09/03/10

Lourenço Marques (hoje Maputo)


Helena Matos escreveu um longo artigo, tomando para si as dores dos retornados e simplificando à medida dos seus argumentos o contexto histórico da descolonização. Parece ser o primeiro de vários, pelo que só nos resta esperar pela continuação. Chamou-me a atenção uma frase:"E não fosse o povo ter chamado bairro dos retornados a alguns conjuntos de habitação social, geralmente pré-fabricada, para onde alguns deles foram residir, não se encontraria outra referência no espaço público à sua existência."
Naturalmente que cada um terá, a esse respeito, a sua experiência particular, mas para mim, «retornado» de um lado e goês do outro, esta susposta invisibilidade não encontra na realidade qualquer confirmação. E bastará percorrer as ruas de vários bairros pela área metropolitana de Lisboa para encontrar outras tantas referências na toponímia: Rua de Malange, Praceta de Moçâmedes, Av. do Ultramar (a minha avó vive lá, estou a falar a sério), etc...
De resto, não se pode propriamente falar dos «retornados» como de um grupo de coitadinhos que ainda hoje estão a pagar a factura da descolonização. Trata-se pelo contrário, e quase sempre, de gente que «triunfou» na vida, se integrou e prosperou, tal como os seus descendentes. Soa estranho, portanto, este interesse tão evidentemente revanchista da colunista do Público a propósito de um tema que está já resolvido, e há muito, a não ser na cabeça de alguns leitores de «O Diabo».



Daqui poderíamos passar à análise do colonialismo português propriamente dito, que é um pouco como o elefante no meio da sala do artigo em causa. Quais as razões para tanto medo?
[De resto, considerando a quantidade dos que lá ficaram, é lícito afirmar que não se tratou de uma opção generalizada, mas de uma escolha. Só para não ir mais longe, o meu avô veio para Portugal enquanto o seu irmão ficou em Angola, até hoje e apesar das queixas frequentes a propósito do fornecimento de eletricidade]
Mas não é isso que pretendo fazer e a razão para tal encontra-se no próprio blog onde escreve Helena Matos e que é, ao que consta, um dos mais lidos. Quis João Miranda assinalar o dia da mulher com um dito humorístico à altura , a propósito de um «indiano» que oferece flores. E na naturalidade com que funciona o seu humor, ilustrou o registo escondido no texto de Helena Matos. Ao que parece, não havia nada de mal no colonialismo português, onde tudo «funcionava» porque cada um sabia qual o seu lugar. Mas a mobilidade social possível no frágil capitalismo português presentou-nos com esta aparente anomalia - o maior grupo privado português é gerido por alguém chamado Zeinal Bava (que não é evidentemente um retornado, pela simples razão de que não retornou ao Gujarat, mas antes deu à costa em Portugal).
Motivo de sincero regozijo para um liberal? Claro que não. Aparentemente, o lugar certo para Bava seria num qualquer restaurante da vida nocturna, onde João Miranda lhe poderia comprar flores para oferecer à sua namorada ou esposa, nesse singular dia do ano em que se sente na obrigação de fazer um comentário boçal acerca da condição feminina.
Sim, o colonialismo português deixou muitas feridas abertas e a guerra parece continuar. Uma vez que João Miranda já partilhou com os seus leitores o lugar que os monhés devem ocupar na divisão do trabalho, talvez seja tempo de Helena Matos partilhar connosco o cheiro do napalm despejado pela manhã para defender a integridade do território ultramarino. É que, lamento dizê-lo, esta história não tem apenas 35 anos.

11 comentários:

Fernando Antolin disse...

As designações toponímicas que refere eram comuns na então chamada "Metrópole",identificando/homenageando uma, então existente, pluricontinentalidade. Ainda persistem em muitos sítios e são muito anteriores ao "tempo" dos "retornados". Que efectivamente foram olhados com desconfiança e desprezo à chegada e tantas vezes ignorados. Ainda bem que se integraram com sucesso(quase todos) numa lição/demonstração(mais uma) da sua fibra. Penso que lhes devemos muito mais do que pensamos.

Ricardo Noronha disse...

Mas Fernando, não se poderá dizer o mesmo - e com muito mais propósito - dos cabo-verdianos que vieram trabalhar para Portugal (para a ponte sobre o tejo, por exemplo) e que ainda hoje são vítimas de racismo? Os filhos deles nasceram cá e são considerados estrangeiros.
E no entanto pouca gente se lembra de dizer a esse respeito, que lhes devemos muito mais do que pensamos.
Poderíamos estender estes exemplos até ao infinito - órfãos provocados pela guerra colonial, pessoas que foram torturadas e deportadas, que ficaram sem as suas terras ou que viram as suas sementeiras destruídas, etc...
E contudo, os retornados e o seu drama épico ocupam um lugar singular no que à memória diz respeito e permitem constantes alusões à «vergonhosa descolonização portuguesa». Alusões que de resto nunca desperdiçam adjectivos para caracterizar a «vergonhosa colonização portuguesa».
Penso que a Quinta da Figueirinha (Oeiras) já foi edificada mais tarde, mas não tenho a certeza. Mas há lá cafés como o «Muxima» ou a «Estrela de África» que apontam para uma forte expressão dos retornados no espaço público.

Joana Lopes disse...

Magnífica a canção sobre Moçambique! Não a conhecia, eu que lá nasci portuguesa de segunda e «retornada» muito, muito antes de...

Fernando Antolin disse...

Mas claro que somos devedores de todos os que,antes e depois de 74,vindos de África ou de qualquer outro lado,aqui comeram o pão que o Diabo amassou e ajudaram esta terra a prosperar. Como os que daqui sairam e fizeram o mesmo noutros lados. Os círculos fecham-se sempre.

Anónimo disse...

Esta história dos retornados continua por não ser contada no seu todo mais negativo.

1º Demonstrou o caracter de um povo que não se respeita a si próprio.

2º Vimos um povo que com o seu comportamento causou tanta repulsa na maioria dos retornados, que os mais novos e mais capazes, simplesmente tornaram-se brasileiros canadianos americanos e até australianos.

3º Ainda hoje, devido ao atrazo intelectual que faz parte do nosso ADN, os mais novos não conhecem a história dos retornados e seus motivos, porque os políticos que nós parimos só produzem intencionalmente ignorância no povo (carneiro).

Anónimo disse...

«vergonhosa descolonização portuguesa».

Um servicinho da esquerda portuguesa, esqueceu-se de dizer. Agradeçam ao Mário Soares e ao Almeida Santos.

Chessplayer disse...

"... à «vergonhosa descolonização portuguesa». ..."
eu que em 1970 estive na Guiné com uma G3 na mão defendendo aquilo que "pensava" que era nosso, ainda não entendi o que querem dizer com "vergonhosa descolonização". frequentemente viajava de BUBA (Aldeia Formosa) para Bissau na primeira barcaça que por lá aparecia. vi bem como os que viriam a ser retornados tratavam os de lá. uma vez fiz escala numa terreola para almoçar, e eu Furriel Miliciano fui tratado como se fosse um deus. tudo bem. só que a miúda que me servia... melhor tratamento tinha o cão e o macaco dos que viriam a ser retonardos.
Resumindo, se os kamaradas tinham o poder na mão, como era possível fazer outro tipo de descolonização?
Alguém pode explicar?

Anónimo disse...

Devia ter lá estado! Como em todos os sítios há pessoas bem e mal sucedidas. Agora quanto à descolonização foi muito mais vergonhosa que qualquer especie de colonização feita, diria quase, por qualquer outro país. Vá a Moçambique, 35 anos depois, e veja o que pensa aquele povo em relação ao colonialismo português! Mas se chalhar cá há mais racismo que houve em África, mais discriminação. Vá lá e olhe com isenção para o que foi feito pelos "colonialistas". Veja o que o povo Moçambicano pensa! E não limite a sua opinião só a Lisboa e arredores. Vá para a provincia. Claro que como em todas as guerras há orfãos! Até no Kosovo, e fomos para là. Não adivinha porque é que os portugueses foram para o Kosovo?
Jorge

Unknown disse...

Caro Ricardo Noronha:

Como pode afirmar que o assunto dos retornados "está resolvido"??? Você não sabe do que está a falar. Não está nada resolvido, e dói no coração de todos os que passaram por isso. Vá falar com retornados e filhos e netos de retornados, oiça o que eles têm a dizer antes de escrever sobre este assunto. E não é só uma questão sentimental, é também, ainda, financeira. Eu, que não tenho casa própria, também apetece-me exigir do governo uma casa em habitação social com renda baixa.

Sofia Meireles

Ricardo Noronha disse...

Cara Sofia, está a bater numa porta aberta. Eu sou filho e neto de retornados, dos dois lados. Como aliás está escrito no post.
O assunto está tão resolvido como a guerra colonial. O que não implica que não tenha deixado marcas e recordações dolorosas. De parte a parte.

Miguel Madeira disse...

"Vá falar com retornados e filhos e netos de retornados, oiça o que eles têm a dizer antes de escrever sobre este assunto."

Os meus pais são retornados (e eu também, embora não tenha memórias de Moçambique) e acho que acham que o problema está resolvido;

aliás, ainda me lembro de, há uns 20 anos, ouvir o meu pai a falar com outros retornados e um deles dizer "já viram que estamos muito melhor aqui do que alguma vez estivemos lá?".