Diz-se que os historiadores já não têm a paciência, nem a ousadia, para andarem por aí pelas esquinas, às apalpadelas ao vento, em busca do dito zeitgeist. Mas quando um tipo que anda a escrever um artigo acerca da história do futebol na segunda metade do século XX – acontece comigo e não o lamento – é forçado a encarar, olhos nos olhos, este fulano e a sua pose magnífica, então não há como evitar a tentação hegeliana: abreviar o espírito de uma época num só lapso de tempo. Ofereço-vos então esta bela fotografia. Não têm de quê. E passo à legendagem.
Há quatro ou cinco parágrafos que eu e o meu texto de história do futebol andamos ambos os dois a tentar sinalizar um espaço que delimite a intersecção entre o internacionalismo popular emergente no segundo pós-guerra e o que se vulgarizou designar por globalização cultural. Pelo primeiro, o internacionalismo popular, entenda-se, entre outros percursos possíveis, o que vai do americanismo e seu anti ao terceiro-mundismo, passando na Europa pelas democracias populares a leste e as reconstruções nacionais a ocidente. Pelo segundo entenda-se o laço que envolve as multinacionais e seu marketing identitário, a proliferação de comidas tidas por étnicas, o nike-samba-football, a world music, e mais não sei quantas coisas.
Ora, andava eu por ali e não é que me aparece este cabrão?, assim nestes modos e a resolver o problema de uma só penada? É que nesta fotografia, é só trigo limpo, a fazer lembrar uns textos refundidos do António José Saraiva, em que se elogiava a Alfama em que as criancinhas chapinhavam nas poças e se criticava o frio e cinzento banlieu parisiense, pelo meio juntando ainda à receita romântica uns pózinhos de Quartier Latin, onde seria possível encontrar não só louras de cabelos cumpridos a descer costas abaixo, mas também partículas do Cambodja e outras freakalhoquices que o José Pacheco Pereira teve o esmero de criticar, quando ainda era muito jovem e num texto quase-seminal.
Bom, mas de regresso ao homem da foto e à própria foto.
Temos então o traje do clube mais popular da cidade – Republica Popular de la Boca, escreve-se nas paredes das ruas lá do sítio, mas também está grafitado nas t-shirts que são vendidas ao turista; no traje do clube temos as cores da bandeira nacional hasteada no primeiro barco que aportou por aquelas bandas no dia em que se decidiam as cores oficiais; e temos ainda o logo da Nike, assentando que nem uma luva a uma identidade clubistica que se diz local, mas que se forjou a partir de uma simbologia nacional de um país tão distante do local em causa como a Cova da Iria dista da Conchichina; e depois há a cruz, é claro, a cruz onde pregaram o nosso senhor e que também entra bem nesta conversa, porque o internacionalismo popular é aquele que privilegia a paz entre os povos em detrimento da guerra entre as classes; finalmente não esquecemos as missangas, ali mesmo, logo ao lado da cruz!, e se eu nem sei qual é o percurso histórico das missangas, no caso do personagem que aqui as enverga estou certo que vêem de eco a uma antiga paixão rastafariana.
Pergunta-me a terminar: e o charuto, em combinação com a boina verde e a estrela vermelha?
Bom, talvez estes três falem por si... Boa noite, boa sorte. Já faltou mais para o Mundial da África do Sul e já tive menos esperança que o Di Maria trouxesse o troféu para a Luz.
Há quatro ou cinco parágrafos que eu e o meu texto de história do futebol andamos ambos os dois a tentar sinalizar um espaço que delimite a intersecção entre o internacionalismo popular emergente no segundo pós-guerra e o que se vulgarizou designar por globalização cultural. Pelo primeiro, o internacionalismo popular, entenda-se, entre outros percursos possíveis, o que vai do americanismo e seu anti ao terceiro-mundismo, passando na Europa pelas democracias populares a leste e as reconstruções nacionais a ocidente. Pelo segundo entenda-se o laço que envolve as multinacionais e seu marketing identitário, a proliferação de comidas tidas por étnicas, o nike-samba-football, a world music, e mais não sei quantas coisas.
Ora, andava eu por ali e não é que me aparece este cabrão?, assim nestes modos e a resolver o problema de uma só penada? É que nesta fotografia, é só trigo limpo, a fazer lembrar uns textos refundidos do António José Saraiva, em que se elogiava a Alfama em que as criancinhas chapinhavam nas poças e se criticava o frio e cinzento banlieu parisiense, pelo meio juntando ainda à receita romântica uns pózinhos de Quartier Latin, onde seria possível encontrar não só louras de cabelos cumpridos a descer costas abaixo, mas também partículas do Cambodja e outras freakalhoquices que o José Pacheco Pereira teve o esmero de criticar, quando ainda era muito jovem e num texto quase-seminal.
Bom, mas de regresso ao homem da foto e à própria foto.
Temos então o traje do clube mais popular da cidade – Republica Popular de la Boca, escreve-se nas paredes das ruas lá do sítio, mas também está grafitado nas t-shirts que são vendidas ao turista; no traje do clube temos as cores da bandeira nacional hasteada no primeiro barco que aportou por aquelas bandas no dia em que se decidiam as cores oficiais; e temos ainda o logo da Nike, assentando que nem uma luva a uma identidade clubistica que se diz local, mas que se forjou a partir de uma simbologia nacional de um país tão distante do local em causa como a Cova da Iria dista da Conchichina; e depois há a cruz, é claro, a cruz onde pregaram o nosso senhor e que também entra bem nesta conversa, porque o internacionalismo popular é aquele que privilegia a paz entre os povos em detrimento da guerra entre as classes; finalmente não esquecemos as missangas, ali mesmo, logo ao lado da cruz!, e se eu nem sei qual é o percurso histórico das missangas, no caso do personagem que aqui as enverga estou certo que vêem de eco a uma antiga paixão rastafariana.
Pergunta-me a terminar: e o charuto, em combinação com a boina verde e a estrela vermelha?
Bom, talvez estes três falem por si... Boa noite, boa sorte. Já faltou mais para o Mundial da África do Sul e já tive menos esperança que o Di Maria trouxesse o troféu para a Luz.
8 comentários:
Acho que as missangas têm origem nas conchinhas africanas (cauris) como moeda de conta primitiva, usada até ainda há pouco p/e pelos Cuanhamas, uma prática milenar tanto quanto o imenso deserto de Moçâmedes era submerso pela água do mar; consoante as conchas eram mais ou menos raras, assim significavam mais ou menos valias. Daí a malta pô-las ao peito para evitar perder a guita.
Na Europa outra moeda importante é a Fé. Quem vai hoje a Nápoles ainda encontra lojas com altares em honra do Maradona.
Excelente post e uma imagem que simboliza Maradona, irreverência, paixão, mística e descontracção. Fora todos os símbolos que o acompanham, desde a camisola do Boca Juniors, ao charuto, boina verde e estrela vermelha, estes três últimos resultado da proximidade que manteve com Fidel Castro e do tempo passado em Cuba e não só (isto visto de um modo muito simplista). Maradona é uma figura apaixonante não só pelo futebol praticado mas também por toda a postura que mantém extra-futebol, dá outra cor ao espectáculo, para o bem e para o mal é uma figura a que ninguém consegue ficar indiferente e parece que num ápice, resolveu um problema ao Professor.
Fiquei a saber deste blog através do Banco Corrido, que acompanho com alguma regularidade e cujas sugestões de leitura costumam ser deveras interessantes. A recomendação de leitura foi bastante acertada e vou continuar a acompanhar o blog e os posts colocados pelos autores.
Quanto à referência a António José Saraiva, confesso que me fez lembrar a aula de 3ªfeira, onde esses elogios do autor sobre Alfama foram referenciados.
P.S. Quanto ao Di Maria, será que nessa altura ele ainda estará no Benfica?
Cumprimentos cordiais,
A.
aníbal,
não te preocupes, ele deixa cá a taça. quanto à aula de terça, tendes razão...
até já
xatoo, gracias pela dica
Oi xatoo, mas eu aposto que chegou ao peito do Maradona via brasil e religiões de ex-escravos africanos.
Aliás, o que faria muito sentido ao lado da cruz.
«Em detrimento da guerra entre as classes» ou a favor da guerra entre as classes?
ricardo, em detrimento.
mas eu não estou a falar do conceito de povo do Martins Rodrigues. Que exlcui a burguesia do conceito para nele sublinhar a importância dos trabalhadores rurais e dos camponeses, assim como dos povos colonizados.
abç
ricardo, em detrimento.
mas eu não estou a falar do conceito de povo do Martins Rodrigues. Que exlcui a burguesia do conceito para nele sublinhar a importância dos trabalhadores rurais e dos camponeses, assim como dos povos colonizados.
abç
Enviar um comentário