Quando falamos de nós próprios é sempre difícil esquivar a insolência. Se somos demasiado benévolos parecemos arrogantes, se nos fazemos de humildes ou despretensiosos tudo soa um tanto a contrafeito. E se procuramos parecer imparciais fazemos com que a nossa vida pareça aos olhos dos outros um pântano de apatia e displicência. Mas vou correr o risco de desempenhar qualquer um desses papéis, já que o blogue é dos suportes literários mais volúveis que existem e daqui por uma semana, talvez menos, ou bem menos, já ninguém se lembrará disto.
Gosto de me ver como um tipo da província. A figura faz-me uns anos mais novo e deixa que mais facilmente me sejam perdoados os erros, as omissões, uma ou outra quebra das regras em uso nos ambientes mais refinados. Gosto dela porque me serve de máscara e às vezes de álibi. É pois como provinciano que me repugna um tanto o jogo social, comum entre muita gente das artes e das letras, certos bloggers, alguns jornalistas, e até políticos mais atrevidos, traduzido na ostentação da sua própria singularidade. Naquela atitude a que entre os decadentistas franceses da segunda metade de Oitocentos se chamava, à época com relativa propriedade, «épater la bourgeoisie». Ora é esta rejeição visceral do poseur que me faz gostar de conhecer, não sem uma certa dose de parcialidade, episódios como o relatado por Enrique Vila-Matas no seu recente Diário Volúvel (Teorema, trad. Jorge Fallorca).
«Estive a rever o embate televisivo, em 1980, entre Catherine Ringer e Serge Gaisnbourg. A primeira coisa que ali vemos é Ringer, cantora do dueto Les Rita Mitsouko e moderna a cheirar a novo, sentada ao lado de um moderno consolidado, o volúvel Gainsbourg. Não tarda a verificar-se o previsível choque, talvez geracional. Ringer, empenhada em épater o moderno consolidado, contou que tinha participado em filmes porno e foi interrompida por um depreciativo Gainsbourg, que lhe disse que isso era simplesmente fazer de puta e não podia causar mais vómitos. A conversa enrolou-se durante um bom bocado, porque Ringer (genial artista que me revelou Sergi Pàmies, o Inverno passado) recusou-se a aceitar que ser actriz porno fosse repugnante e ela uma puta. Gainsbourg insistiu que ser puta era nauseabundo. Ringer disse então que quem era asqueroso era precisamente ele, mas acabou por aceitar, com um meio-sorriso, que o seu passado era repugnante. «Em todo o caso», desculpou-se Ringer, «o meu trabalho faz parte da aventura moderna.» E então o caldo entornou-se de vez, e o momento acabou por se tornar memorável.Se o foi ou não, isso eu não sei. Provavelmente Vila-Matas exagera um bom pedaço. Mas que compreendo a repugnância do grande Serge perante um Catherinezinha a gabar-se da absurda originalidade das suas manobras horizontais (e isto aconteceu há 30 anos, por favor não esqueçam), lá isso compreendo. Se bem que também ele fosse, como qualquer tipo da província pode agora saber através da Internet, um grande, um enorme poseur. No fundo, bem lá no fundo, andamos todos ao mesmo.
– Ah, não! – disse um exaltado Gainsbourg – A aventura moderna não é repugnante. Nós temos ética.
Se Rimbaud, no século XIX, semeou a essência do ser moderno em França, Gainsbourg, na mesma França, apontou o fim do «vale tudo», marcou os limites morais da vanguarda deu o primeiro pontapé na modernidade sem ética. Um momento histórico.»
Publicado também em A Terceira Noite
3 comentários:
"é pois como provinciano que me repugna um tanto o jogo social, comum entre muita gente das artes e das letras, certos bloggers, alguns jornalistas, e até políticos mais atrevidos, traduzido na ostentação da sua própria singularidade." No meu caso, não é como provinciana, é mesmo como pessoa.
Parafraseando uma frase do injustamente esquecido Júlio Roberto, todo o provinciano «é pessoa», Henedina...
Mas não precisa de ser uma pessoa provinciana, basta ser(pessoa).Não precisa de adjectivar.
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