o meu artigo no i desta quinta-feira:
No Verão de 1994 uma barreira de veículos de todo o tipo – camiões, carros e furgonetas – interrompeu a circulação rodoviária sobre a Ponte 25 de Abril.
Naqueles dias, milhares de pessoas travaram a sua própria marcha em direcção ao emprego, contestando assim o aumento do preço das portagens. Se hoje recordo tamanha revolta, é porque ela permite debater questões que resultam particularmente interessantes no momento em que um governo prepara uma política de restrição da mobilidade urbana e em que sindicatos e outros movimentos sociais preparam uma greve geral.
A revolta da ponte não decorreu no lugar clássico das grandes lutas sociais da contemporaneidade, a fábrica. E a importância que as populações da margem sul do Tejo atribuíram em 1994 à luta contra o aumento das portagens da ponte pode mesmo ser tida como sintoma da crise da instituição fábrica: falida, desmantelada, abandonada, a fábrica entrou em crise, como nesses anos foi exemplificado pelo encerramento das instalações da Lisnave na zona da Margueira, em Almada.
O que significou esta crise da instituição fabril?
Tida como o lugar da produção por excelência, e por isso valorizada por governos e patrões enquanto fonte da sua riqueza, a fábrica foi também, durante muitas décadas, o foco da conflituosidade político-social, temida por governos como factor de desordem pública e por patrões como fonte da crítica à propriedade. A debandada das fábricas deve ser por isso compreendida como debandada de patrões para países e continentes onde a mão-de-obra era mais barata e estava politicamente desorganizada, ma também enquanto fuga dos trabalhadores à pena da disciplina fabril: quem na ponte lutava contra o bloqueio era também quem por esses anos multiplicava esforços para financiar a educação universitária, sua ou dos seus filhos, ousadia que parte das elites deste país ainda continua a censurar, com o aristocrático argumento de que nem todos teremos nascido para ser doutores.
A crise da instituição fabril não significou, contudo, que o reino da produção se tenha evaporado. Sempre que nos falarem da necessidade de o país voltar a produzir, é preciso recordar que a população nunca deixou de produzir. Porventura o equívoco está em tomar como produtores apenas e só a figura do operário fardado de azul da Lisnave, quando deveríamos falar de uma multiplicidade de produtores: do estudante que se qualifica em universidades que se limitam, cada vez mais, a preparar mão-de-obra formatada à medida das necessidades imediatas das empresas ao precário que se move nos transportes públicos da metrópole, de biscate em biscate, impulsionado pela mesma necessidade que faz o operário circular no interior da “sua” fábrica; do trabalhador doméstico, como a dona-de-casa, empresária de si e dos seus cuja actividade produtiva, ontem ainda objecto de uma parca remuneração graças aos apoios de um Estado social, se arrisca hoje à completa invisibilidade, até ao graffiter suburbano cujas pinturas, legais ou ilegais, decoram a cidade que o turista estrangeiro vem consumir.
Se olharmos de frente para esta multidão de produtores, fácil é, quando recordamos os acontecimentos da ponte, sermos tentados a rebaptizá-los como experiência de um novo tipo de piquete, já não realizado à porta do edifício de trabalho, mas da cidade dos produtores, a metrópole em que todos os habitantes são produtores de uma economia capitalista que fez da vida e da sociedade em geral uma imensa fábrica de dívidas para uns e lucros para outros.
Aos governos poderíamos então perguntar se restringir os transportes públicos é um simples corte na despesa ou é também a paralisação de uma economia que se fundamenta na vida de uma cidade que já não sabe nem quer distinguir onde começam e acabam a cultura, a economia e a sociedade, tão pouco a produção, a distribuição e o consumo. E aos sindicatos e movimentos sociais poderíamos perguntar se deverão os piquetes ser feitos apenas à porta dos edifícios de trabalho ou também noutros pontos da cidade, lançando o apelo: à greve, cidadãos!
10/11/11
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7 comentários:
Em primeiro lugar, devo dizer que sou estudante de Geografia e, como tal, escrevo este comentário ao artigo em questão não só por um interesse histórico e ideológico em relação ao tema abordado mas, essencialmente, pela ligação que aqui se coloca entre sindicalismo e metrópole.
Para além da questão da mobilidade espacial, desde a simples deslocação à apropriação, as quais, a meu ver, estão intrinsecamente associada a questões sociais, e entre elas, claramente, o trabalho. Para lá da questão de um processo histórico recente de desindustrialização no ocidente e relocalização em países onde a exploração capitalista pudesse ser mais facilitada, originando vários problemas sociais, tanto para no local de partida como no de chegada. E, para além da noção de salto de uma lógica de luta sindical que passa da fábrica para a metrópole, a minha pergunta é se, com tal alteração, não se torna igualmente necessário um reequacionamento crítico do espaço dentro de uma lógica anti-capitalista, em especial na teoria marxista, de forma a analisar as várias formas de produção e consumo do espaço, a sua carga simbólica e inclusivamente de manifestação de poder como se pode observar pela lógica de propriedade e/ou apropriação, bem como em relação às limitações e potencialidades que o espaço poderá representar para uma luta de superação do capitalismo?
Tenho lido alguns trabalhos de teóricos que tratam a questão espacial - geógrafos como David Harvey e Neil Smith, bem como alguns cientistas sociais de outros áreas como Sharon Zukin, Saskia Sassen, Manuel Castells ou Henri Lefebvre. Mas o tema que aqui aborda, ao que julgo saber por anteriores intervenções suas, oriunda do sindicalismo italiano dos anos 70 e com especial contributo teórico de Antonio Negri, parece-me estar ainda relativamente inexplorada, mesmo que pareça ser capaz de dar contributos importante não só para uma crítica do espaço urbano como, principalmente, para possíveis formas de luta a nível sindical, como bem enumera no fim do artigo.
De momento, a contribuição mais interessante para este tema parece-me ser a de David Harvey, em especial através de uma ideia que o próprio vai buscar a Lefebvre, e que pode ser encontrada num artigo intitulado "The Right to the City", onde chega a fazer uma ligação entre as revoluções que sucederam em Paris durante o séc.XIX e o urbanismo. O artigo, se lhe interessar, poderá ser encontrado no seguinte link http://newleftreview.org/?view=2740
Acho que me estendi um pouco no comentário, e também me parece-me que não fui muito claro, mas de facto este é um tema que tema me interessou bastante e gostaria de saber um pouco mais a sua opinião sobre o mesmo.
Belo post, grande camarada Zé Neves.
Só é pena que o título não seja o "À greve, cidadãos" com que rematas o teu raciocínio - mais claro e mobilizador do que o (nada mau, também) "sindicalismo metropolitano".
O comentário do Nuno também tem que se lhe diga. Com efeito, a ideia de "direito à cidade" de Lefebvre e os seus projectos de uma "carta" ou "contrato" de cidadania, têm a vantagem de incluir a esfera produtiva em sentido estrito, com as suas exigências de democratização ao nível do trabalho, mas sem se limitarem a ela, e reivindicando a generalização da participação e do autogoverno ao conjunto da cidade - na tradição da Comuna e contra o primado governante da economia.
Abraço para ambos
miguel(sp)
Miguel, vou guardar esse titulo para o dia da greve...
Nuno, as questões que coloca são muito importantes e agradeço-lhe desde ja o comentário. Sim, em boa parte a expressão sindicalismo metropolitano vem da tradição autonomista italiana, embora o seu ponto de partida seja o operário e não o espaço (a ideia de fábrica social, de um operário que passa de operário-massa a operário social, etc.). um bom sítio para encontrar algumas reflexões que caminham nesse sentido (e já mais próximo do universo académico a que faz referência) é um ou outro número da revista futur anterieur (encontra depositados todos os números no site da revista multitudes). também valeria a pena ver as primeiras coisas que o massimo cacciari, hoje à frente da cidade de Veneza..., escreveu sobre o tema, assim como um livro do Pier Vittorio Aureli, sobre arquitectura e autonomia (neste caso tomando distâncias em relação às perspectivas de Negri, mas ainda no quadro de uma reflexão pós-autonomista).
abç
Agradeço desde já pelas respostas, tanto do Miguel como por parte do Zé Neves, pois parece-me que as duas deram o sentido que procurava para esta questão e me tinha faltado no primeiro comentário. Irei pesquisar as fontes que referiu de forma a poder conhecer um pouco mais estes temas.
No entanto, e começando pela ideia de fábrica social, parece-me que a ideia da transição de operário-massa para operário social, encontra ligação de uma outra ideia que o Zé Neves já tinha abordado, que é a da passagem da fábrica, aqui num sentido mais físico de localização, para a uma fábrica em larga escala que poderá ser a metrópole, inserindo-se nela uma gama complexa e variada de novas formas de produção e interacção social. Esta ideia de metrópole como fábrica parece-me relacionada com o já referido operário-social, ainda que não se esgote nela, mas a qual, com alguns ajustamentos, poderá ser transporta para a de cidadania e de democratização do trabalho, encontrando claramente expressão na tradição da Comuna, como bem refere o Miguel, e na ideia de direito à cidade como espaço de participação e auto-gestão. Parece-me ser um tema com inúmeras possibilidades de investigação e que podem possibilitar novas formulações de propostas.
Abraço
Um outro livro muito interessante relativamente às questões que o Nuno coloca, especialmente neste último comentário, é o "Política de Libertação Urbana", do Stephen Schcter, um marxista heterodoxo canadiano, que estou a ler precisamente neste momento, e que curiosamente foi traduzido pelo Miguel Serras Pereira.
Stephen Schecter, corrijo.
Obrigado André. Estou certo que se trata que se trata de um livro que poderá aclarar um pouco mais esta questão.
Abraço
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