21/11/11

Em resposta ao João Vasco

No blogue Esquerda Republicana, o João Vasco publicou nos últimos dias vários textos em que reflecte sobre as eventuais vantagens e problemas associados a um sistema político assente na eleição de representantes, habitualmente conhecido por Democracia Representativa. Segundo a argumentação apresentada, este sistema tenta conciliar Aristocracia (governo dos sábios) com Democracia (governo dos cidadãos), de modo a minimizar quer os erros por parte interessada dos primeiros quer os erros por ignorância dos segundos. Tal aconteceria através da selecção de representantes pelos cidadãos, os quais tenderiam a escolher aqueles ("sábios") que demonstrassem maior sabedoria na defesa do interesse comum. Na prática, sabemos que o sistema de Democracia Representativa não funciona da maneira descrita. As razões são aparentemente muitas, mas na essência resumem-se a apenas uma: opacidade. Esta decorre não só da dissimulação de informação relevante para a escolha em questão, ou até do fornecimento deliberado de informação falsa (por exemplo, quando alguém promete sabendo que não cumprirá), mas também da falta de capacidade por parte dos cidadãos para processar mesmo apenas a informação disponível. Esta última resulta, em parte, do enorme diferencial existente entre o esforço necessário para desenvolver e aplicar essa capacidade, e o impacto que um único voto tem na definição das políticas que serão efectivamente implementadas pelo conjunto dos "sábios representantes" (em particular, devido à desinformação atrás referida). E no que se refere a este último aspecto, importa ainda referir a frequente ausência de total liberdade na escolha dos representantes, quer porque há votos que efectivamente não contam para essa escolha, quer porque nem todos podem ser eleitos. A consequência de tudo o que foi mencionado é o desinteresse e alienação dos cidadãos quando colocados perante o processo de eleição dos seus pretensos representantes.

Existem vias para amenizar os problemas acima descritos, as quais permitem, por exemplo, assegurar que todos os votos contam na eleição dos representantes, relembrar continuamente a estes o quão representativos realmente são, desincentivar o recurso à mentira antes da eleição, e impedir a aplicação de políticas sem apoio maioritário entre os cidadãos. No entanto, acabam por ser sempre remendos, que tentam limitar tanto quanto possível os (muitos) erros por parte interessada acima mencionados, cometidos pelos representantes (deficientemente) eleitos. Aceitando que tais remendos são necessários, parece-me que a conclusão lógica é a substituição completa dos representantes eleitos por cidadãos aleatoriamente seleccionados (e portanto estatisticamente representativos). Acabariam então de vez os erros por parte interessada, sobrando potencialmente apenas os erros por ignorância. No entanto, a evidência que decorre de inúmeras experiências com júris de cidadãos sugere que qualquer que seja a composição duma assembleia de cidadãos, desde que estes tenham tempo, acesso a toda a informação relevante e uma estrutura de apoio, os erros por ignorância não são mais frequentes do que numa típica assembleia de representantes eleitos.

13 comentários:

David da Bernarda disse...

A questão central é: quem escolhe os «nossos» representantes? Pois eles já foram escolhidos antes dos eleitores neles votarem...
Os chamados representantes são eleitos, como todos sabemos, por uma minoria maioritária, mas insignificante. Em quase todos os países os vontantes rondam os 40%, e é entre esses que se decide o grupo minoritário vitorioso!
Caso houvesse interesse que efectivamente os cidadãos decidissem existem hoje mecanismos tecnológicos que permitiam consultas e referendos quase instântaneos para conhecer a nossa opinião. No entanto os donos do Poder fogem como o diabo da cruz da consulta popular. Ninguém os vê com vontade de perguntar sobre a adesão à União Européia, presença na NATO, existência de exército, ou outras questões relvantes.
E perdemos nós o tempo a falar de governo de «sábios», uma anedota olhando o estado deste país e do mundo...Voltem a falar de governo de classe.

João Vasco disse...

Em primeiro lugar, obrigado pelo texto. É sempre bom ler um texto bem estruturado sobre as ideias que expus.

Também concordo com o «diagnóstico» no que diz respeito à democracia representativa, em particular na descrição do problema da «opacidade» e daquilo que o agrava.

Quanto às vias sugeridas para amenizar estes problemas, parecem-me que vão no sentido certo (tentar aumentar a participação popular), mas não concordo com todas.
A selecção aleatória de representantes pode aumentar o problema da corrupção pois não existe punição política para o representante, e o escrutínio pode ser mais difícil, visto que o cidadão tem direito à sua privacidade, e não abdicou parcialmente dela voluntariamente por uma vontade de se dedicar à política activa.
As cadeiras vazias também não me parecem uma boa ideia. Quem não se pronuncia, não se pronuncia, por isso quem fala pela maioria dos que se pronunciam tem essa legitimidade.
Se em 40 amigos a escolher um lugar para o jantar 5 querem ir ao Burger King, 6 querem ir à tasca dos grelhados, e os outros 29 dizem que não se querem pronunciar, a maioria decidiu ir à tasca. E se estes 29 reclamam, eles que tivessem sugerido qualquer coisa, ou votado de maneira diferente. Acho absolutamente indecente a atitude de se desresponsabilizar na altura de decidir, e depois não aceitar as consequências.
Eu percebo a importância política do voto em branco, e já várias vezes considerei essa hipótese, mas não creio que justifique uma cadeira vazia.
Mas muito menos a abstenção. Uma vez estive em viagem por uns dias e não pude votar, se pudesse sabia perfeitamente em quem queria votar, e não fazia sentido nenhum pôr lá uma cadeira vazia em meu nome. E se não fosse votar porque não me queria dar ao trabalho de ler os nomes dos partidos, as propostas, e perder o meu tempo a ir à cabine de voto, não faz qualquer sentido estar a perder representatividade (menos deputados) para recordar toda a gente da minha preguiça.

Já as sugestões quanto aos círculos e quanto ao «recall», são do meu agrado.

Anónimo disse...

As questões postas pelo João Vasco- e reafirmadas no seu comentário- colocam-nos imensos problemas:o dilema sociedade ou Estado, o problema da representatividade efectiva, política, que, no actual ciclo histórico dominante se apoia e desenvolve pela hegemonia da hierarquia politica, a divisão da sociedade como divisão do poder e do não-poder. Para combater a desigualdade socio-económica, social e política,só existe uma alternativa: a luta pela igualdade efectiva no plano do poder- e uma sociedade que tenha como pólo de referência essa igualdade. E tudo isso, como salientou Castoriadis, essa ideia de igualdade é por-si própria uma criação histórica e uma significação imaginária porque, " quer o poder e a política não são " naturais", e , nem ´naturalmente`, nem de outra qualquer forma nós não somos iguais ou não-iguais, somos outros. Mas queremos ser iguais para o que diz respeito ao poder ".Existem igualmente uns conceitos muito operatórios- a que Negri chamou de Biopolitica- que podem ser muito úteis também para pensar a mudança radical de paradigma " democrático" que se conjuga, por invios caminhos, com o encantamento subscrito já por Marx em prol da" riqueza comum..."
Salut! Niet

Pedro Viana disse...

Caro João Vasco,

A corrupção dos membros duma assembleia aleatoriamente eleita teria de ser feita numa tal escala e curto intervalo de tempo que seria impraticável e facilmente descoberta. Tal resulta do facto de estarmos a falar de alguns milhares de membros (de modo a que a assembleia seja estatisticamente representativa da população), com mandatos curtos, de 1 ou 2 anos, sem qualquer contacto prévio com quem pretende corromper e sem posição prévia conhecida. Ou seja, cada 1 a 2 anos, quem pretendesse corromper teria de encontrar pelo menos algumas centenas (para ter impacto sobre as decisões da assembleia) de cidadãos corruptíveis de entre milhares de pessoas completamente desconhecidas. Parece-me altamente improvável que tal conseguisse ser feito sem quase todos os membros da assembleia, e portanto o público em geral, soubesse o que se estava a passar. Basta adicionar penas bem pesadas para os infractores, e temos dissuassão quanto baste. Contraste-se com o que se passa actualmente, onde os pretensos representantes habitualmente só se tornam tal depois de um longo "estágio partidário", durante o qual há tempo mais que suficiente para "outros" moldarem as suas "opiniões", tornando inevitável erros por interesse próprio (seja directo, ou por perda de capacidade para reflectirem de modo independente).

Quanto às cadeiras vazias, acho que basta o exemplo particular do João Vasco: não votou porque não pôde, donde é ilegítima a assumpção (por outros) de que está representado. Compreendo a questão referente à abstenção por desinteresse, sendo o caso mais difícil de abordar. No entanto, pode ser argumentado que uma parte significativa dos cidadãos que se abstém de votar por desinteresse, fá-lo por "culpa" do sistema, que de variadas maneiras, sintetizadas na tal opacidade, desincentiva os cidadãos a participar na eleição dos seus representantes. Segundo este ponto de vista, parece-me ilegítimo afirmar que a opinião desses cidadãos não deva ser sequer pelo menos contada (e classificada como indefinida), antes classificada como inexistente. Finalmente, a existência de "cadeiras" vazias não precisa de diminuir a representatividade, baixando o número de "cadeiras" ocupadas: basta fixar o número de "cadeiras" ocupadas, deixando variar o número de "cadeiras" vazias.

Cumprimentos,

Pedro

João Vasco disse...

«Finalmente, a existência de "cadeiras" vazias não precisa de diminuir a representatividade, baixando o número de "cadeiras" ocupadas: basta fixar o número de "cadeiras" ocupadas, deixando variar o número de "cadeiras" vazias.»

Talvez por ter lido à pressa, essa parte tinha-me escapado.
Nesse caso, tenho menos objecções, parece mais uma questão simbólica do que uma questão material.


Quanto à assembleia de cidadãos, pergunto-me porque é que esse sistema seria preferível a uma forma de democracia directa em que cada cidadão pudesse votar, por internet, qualquer proposta de lei apresentada na AR (para os cidadãos sem internet haveriam «postos de voto» para o efeito, por exemplo).
Isto não sou eu a escrever que não é preferível, é apenas curiosidade sobre a ideia.
Como escrevo no início da série de textos, os gregos consideravam que no que diz respeito a cargos públicos o sorteio era o método democrático, e a eleição um método aristocrático.

João Vasco disse...

Cumprimentos,

João Vasco

Anónimo disse...

Então e que tal um sistema misto?

Numa primeira fase cada eleitor tinha o direito de votar num programa de uma lista de programas genéricos, ou podia votar num número K de programas, ordenando-os por preferência.

O resultado da votação associaria uma pontuação a cada programa.

A cada programa genérico estaria associada uma lista de pessoas interessadas em representá-lo.

De cada lista era sorteado um número de pessoas que iriam representar o programa em assembleia, sendo a proporção desse número nos lugares da assembleia igual à proporção dos pontos da lista no conjunto de todas as listas.

Para além disto, para as pessoas se poderem associar a uma lista teriam de demonstrar idoneidade moral e possuir um nível mínimo de instrução.

Parece-me muito melhor do que sortear cegamente.

Anónimo disse...

Pedro,

provavelmente não conseguiria fazê-lo tão bem, mas estive para responder ao J Vasco e acabei por desistir porque me pareceu que a coisa ia demorar um pouco a explicar.
felizmente, chego aqui e o pedro já tinha dito tudo o que eu queria dizer, respondido a todas as questões que o comentário do Jvasco me suscitou e de uma forma mais clara do que eu alguma vez conseguiria acerca deste assunto.
parabéns e obrigado

David da Bernarda disse...

«E se não fosse votar porque não me queria dar ao trabalho de ler os nomes dos partidos, as propostas, e perder o meu tempo a ir à cabine de voto, não faz qualquer sentido estar a perder representatividade (menos deputados) para recordar toda a gente da minha preguiça.»
JV

Só a demagogia, ou a idiotia, podem permitir alguém classificar a abstenção como «preguiça». Não cabe na cabeça do senhor que a abstenção é também, e principalmente, a opção dos que não se identificam com este sistema dito representativo de gestão da dominação de classe ou estão descrentes em relação ao rotativismo partidário.

João Vasco disse...

Não é demagogia, não.
Há várias razões que podem justificar a abstenção, e a preguiça não é uma razão menor.
No primeiro referendo sobre o aborto o NÂO ganhou, e as praias estavam cheias. A abstenção foi superior a 50% e a descrença nos partidos certamente não pode ser a culpada nesse caso.
Não é que não caiba na minha cabeça que a abstenção pode ser a opção daqueles que não se identificam, mas é uma péssima opção precisamente porque indistinguível da preguiça ou despreocupação. A única forma inequívoca de demonstrar essa descrença é ir às urnas, seja para votar branco ou nulo.

De qualquer forma, limitar-se a chamar demagógica ou idiota a uma opinião divergente apenas revela a falta de argumentos.

Pedro Viana disse...

A proposta das cadeiras vazias pretende ser completamente simbólica. O objectivo é incutir humildade nos pretensos representantes, levando-os a apoiar políticas que sabem ser socialmente mais consensuais.

A democracia directa, em que cada cidadão vota directamente sobre uma dada proposta, tem a vantagem de envolver directamente os cidadãos no processo decisório. No entanto, sofre de alguns dos problemas da democracia representativa. Nomeadamente, dado o reduzido impacto de cada voto, é diminuta a motivação para o estudo aprofundado das propostas em contenda. O resultado seriam, e são, votações definidas por aquilo que as pessoas ouviriam da parte de "líderes de opinião" em vez de serem definidas pela opinião própria de cada um após reflexão cuidada. Este problema seria fortemente mitigado através da constituição de assembleias de cidadãos, onde não só cada voto torna-se relativamente muito mais importante, como também é dado aos seus membros tempo (e capacidade) para colectarem a informação que acharem necessária sob dada questão e depois reflectir sobre ela.

Apesar do que acabei de dizer, acho que é importante a presença de elementos de democracia directa num sistema político. Pois tal permite envolver toda a população no processo decisório, conferindo-lhe maior legitimidade, mesmo que efectivamente tal envolvimento apenas aconteça esporadicamente para cada cidadão. A meu ver, o que poderia existir seria um processo referendário que automaticamente se iniciava após a aprovação de qualquer decisão pela assembleia de cidadãos. Tal processo funcionaria em "urna aberta electrónica", em que cada cidadão utilizaria um código pessoal para votar via internet ou em quiosques electrónicos, durante 1 ou 2 semanas. No entanto, a votação dos cidadãos não se sobreporia à dos seus representantes, antes complementando-a: no final do processo referendário todos os votos seriam somados, mas com os votos dos representantes a pesarem o equivalente à sua representatividade (número de cidadãos a dividir pelo número de representantes).

Ainda, e para acabar, para além dos elementos de demarquia e democracia directa acima mencionados, há alguns aspectos da democracia representativa que importa preservar. Nomeadamente, o carácter de associações políticas dos partidos, ou seja a sua capacidade para servirem de aglutinadores de cidadãos com ideias políticas semelhantes, permitindo a sua discussão e aperfeiçoamento. Não é crível que uma assembleia de cidadãos que nunca se viram, e constituída por pessoas que na sua maioria poderão nunca ter reflectido sobre política(s), numa questão de meses elabore, discuta e vote propostas legislativas alternativas e adequadas às sociedades complexas em que vivemos. Por isto, acho indespensável que haja associações políticas, que actuem acima de tudo como "think-tanks", as quais teriam a responsabilidade de apresentar as propostas para discussão e votação na assembleia de cidadãos (o que não invalida a possibilidade de existência de iniciativas cidadãs, desde que com um número mínimo de apoiantes, internos ou externos à assembleia). As associações políticas que teriam o direito de apresentar tais propostas seriam aquelas cujo número de apoiantes (anonimamente registados num website central) fosse superior a um certo número mínimo. Cada cidadão poderia escolher apoiar (anonimamente) um certo número, a definir, de associações. E alterar a sua escolha quando quisesse (mas a contabilização do apoio para efeitos da definição de quem pode submeter propostas à assembleia de cidadãos teria lugar no início de cada "legislatura").

Cumprimentos,

Pedro

Pedro Viana disse...

Em relação ao comentário do Anónimo das 19:35, do que propõem não me parece que resultaria algo efecdtivamente muito diferente do que temos actualmente, com a diferença de cada cidadão ter mais do que um voto (o que é uma medida interessante e semelhante ao voto transferível) e as listas poderem não ter origem partidária (o que também apoiaria). Mas não me parece exequível a ideia dos programas genéricos, porque não me parece que fosse possível colocar em contenda todos os programas genéricos (potencialmente infinitos, até porque não é claro o que genérico quer dizer) que são possíveis (e se não fosse assim, quem os seleccionava?). Nem me parece possível ou desejável definir e aplicar testes de "idoneidade moral". E qual seria o nível mínimo de instrução?...

O sorteio não é cego. Dele resulta uma amostra que efectivamente representa a população, com todos os seus aparentes defeitos morais e virtudes escondidas.

Herbert Marcuse disse...

«Sob a lei da totalidade repressiva, a liberdade pode tornar -se um poderoso instrumento de dominação. O factor decisivo na
determinação do grau da liberdade humana não é uma gama das
escolhas oferecidas ao indivíduo, mas antes o que pode ser e o
que é escolhido pelo indivíduo.»