22/11/11

Um post do Júlio Henriques: Do sistema prostitucional

Por dificuldades técnicas, não é possível ao Júlio Henriques publicar directamente este post no Vias cuja tripulação doravante integra, para grande proveito dos restantes factual-viandantes e seus amigos, conforme anunciámos há semanas que viria a acontecer.


Do sistema prostitucional

«Quando a última árvore for cortada, o último rio for envenenado e o último peixe for pescado, sabereis então que o dinheiro não é comestível.» (Provérbio dos Cree, índios do Canadá)

Não é fácil nem simples abordar os problemas levantados pela prostituição sexual. Mas esta, pelas cintilações simbólicas que faz incidir sobre as relações salariais num mundo que pretende reduzir-se a um único denominador comum (o dinheiro), pode ser a lupa através da qual se vê melhor todo o sistema prostitucional.
Num livro recentemente editado pela Almedina (Andar na Vida – Prostituição de Rua e Reacção Social, de Alexandra Oliveira), reitera-se mais uma vez, a partir da perspectiva da inevitabilidade da prostituição sexual, a ideia de que esta constitui um trabalho como outro qualquer. Esta posição, invariavelmente exposta como um pragmatismo lúcido e humanista, corresponde à assunção ideológica do statu quo nesta modalidade de relações sexuais e, através dele, de toda a prostituição inerente ao sistema político e económico vigente. (Não esquecer que um dos grandes lemas actuais deste tão civilizado sistema é o famoso «Saiba vender-se», já objecto de manuais de gestão para a coisa ser apreendida em toda a sua aplicabilidade.)
Aceitando-se que a prostituição sexual é um trabalho como outro qualquer, isso tende a significar que no regime mercantil qualquer trabalho é uma prostituição. Seria uma proposição estimulante, a remeter-nos para o que de mais avançado o movimento operário radical formulou nos anos 70, mas os defensores da banalização da prostituição sexual não extraem da sua postura esta ilação lógica, constatável na prática de diversas actividades de carácter mercenário, tais como a publicidade comercial já integrada organicamente na propaganda política mais moderna, que a mercadoria exprime em discurso directo. E não tiram essa ilação porque admitir a fatalidade de relações sexuais prostituídas (com um sempre concomitante aggiornamento legal) se apresenta hoje como um prolongamento ideológico da impossibilidade (imaginária) de abolição do salariato, ou seja, como a continuidade do nebuloso magma doutrinário segundo o qual entre os seres humanos só podem vigorar (realisticamente) relações capitalistas.
Da defesa (contrafeita?) da prostituição sexual – perspectivando-lhe sempre um quadro melhorado, com dignificação de estatuto e melhores condições de trabalho) – decorre necessariamente que ela seja encarada como uma profissão normal e certificada. Ora, assim sendo, esta deverá ser alvo, na sua particular dinâmica, dos trâmites comuns à generalidade das profissões: enquadramento legal e ensino – e portanto escolas, cursos, diplomas, estágios. E, tal como em relação às outras profissões, objecto de promoção junto dos jovens como mais uma carreira de futuro.
Isto, que pode parecer absurdo, já começou a deixar de o ser. E é sem dúvida por isso que a posição política pragmática em defesa da prostituição sexual se tem tornado tão operante e legitimada em múltiplos estudos levados a cabo por universitários na Europa, nas Américas e noutras paragens, estudos de que o livro de Alexandra Oliveira é um bom exemplo. A tal ponto que até pode parecer ser esta, nos nossos dias, a única posição possível e defensável.
Quando referem a problemática da abolição da prostituição sexual, os autores a que aludo (sobretudo sociólogos e psicólogos) declaram que esta é defendida por sectores reaccionários ou ultrapassados, a que chamam «moralistas», mas não sublinham o facto de haver sectores, nomeadamente associações e colectivos envolvidos desde há muito na defesa das prostitutas ou dos prostitutos (como o Nid, movimento criado em França nos anos 30, que evoluiu de posições cristãs para posições feministas não religiosas), que lutam pela abolição da prostituição tal como no passado houve movimentos que lutaram pela abolição da escravatura – num tempo em que esta também parecia inevitável e inamovível. Do ponto de vista libertário, a abolição da prostituição sexual impõe-se com a mesma exigência ética e política que qualquer outra forma de relação alienada, que qualquer outra forma de miséria espiritual.
Após esta ressalva, que é uma discordância fundamental, o livro de Alexandra Oliveira, adaptação da sua tese de doutoramento em psicologia pela Universidade do Porto, contém partes documentais úteis para o conhecimento da prostituição sexual na sociedade portuguesa contemporânea. A ele voltarei noutra oportunidade.



Adenda

Em complemento, parecem-me instrutivos alguns excertos de um texto traduzido do blogue da dramaturga e ficcionista francesa Ariane Walter.

A respeito das modalidades de doutoramento em prostituição

Ariane Walter

Num texto brilhante, Jean-Claude Michéa define o liberalismo como o abandono de toda a moral e a consideração estritamente material das nossas existências. (…) À questão que alguns se põem («Por que razão uma época como a nossa, em que há tantos progressos técnicos, é também amoral?»), Michéa responde que tudo provém das guerras de religião [na Europa], da desordem que esses afrontamentos desencadearam, do temor público sobre a impossibilidade de se viver numa pacífica esfera comum se esta não se afastasse de qualquer consideração religiosa e moral. Provindo daí a criação de uma esfera liberal, que se tornou condição neutra no tocante aos valores, e sendo essa a génese do liberalismo. Ausência de moral. Ausência de filosofia. Ausência de religião. Presença unicamente do dinheiro. «Tratando-se de dinheiro, toda a gente tem a mesma religião.»
Michéa dá um exemplo. Nos nossos dias, a rejeição de toda a moral é de tal ordem que a prostituição, por exemplo, sai da órbita do pecado e do desprezo para passar a ser uma profissão como as demais. Na Alemanha, uma agência de emprego ameaçou eliminar dos seus registos uma rapariga que se recusava a ser «acompanhante» num Eros Center. Mais: na Nova Zelândia, desde 2008, o Estado decidiu preparar modalidades de estudos universitários de prostituição, incluindo licenciatura, mestrado e doutoramento.
Porque não? Porque não iniciar esses estudos logo na escola secundária, visto a moral já não fazer parte do planeta liberal? (…)
Surpreendida com tais revelações, mas preparada para reagir rapidamente aos problemas contemporâneos, perguntei a mim própria como poderia ser esse famoso doutoramento em prostituição. Semelhante aos outros?
O doutoramento é um título universitário que em geral subentende um elevado nível de conhecimentos e de inteligência, quando, na minha modesta opinião, ele nada tem que ver com a realidade da profissão que queremos exercer. É uma maneira de perdermos alguns anos à espera de virmos a praticar uma actividade que bem melhor andaríamos se a aprendêssemos de forma mais concreta. (…)
Ora, pois – temos assim que a prostituição é uma profissão. Deixemos de tapar os olhos, é preciso haver raparigas de alto nível. Toda a gente está consciente disso, não podemos contentar-nos com amáveis amadorismos. Em que poderá portanto consistir o doutoramento em prostituição?
Primeiro ponto essencial, decorrente da ética: nenhum contacto com a clientela. Pode parecer extravagante, mas falando pela minha própria experiência (literária), devo dizer que fiz todos os meus estudos sem nunca ter visto a mais leve sombra do pénis de um aluno. Pensa-se, com efeito, que a qualidade do doutorado se encontra associada à essência esotérica dos seus conhecimentos. Se quiserem alguém que lhes faça qualquer coisa com mão firme, procurem uma FMS (Fodilhona Muito Sexy), não uma prostituta doutorada. Não é a mesma gente.
Quais serão então os conhecimentos requeridos?
Impõe-se a necessidade de historiadoras. Para mostrarem às alunas que este desprezado ofício esteve à frente dos destinos do mundo e que os maiores são sempre pequeninos até à altura em que uma mulher talentosa lhes dá dimensão internacional.
História da profissão. Exigir-se-á às estudantes que conheçam as prostitutas gregas e latinas, as cortesãs, as gueixas, as leoas, tudo isso com nomes, apelidos, datas.
História das moedas, mostrando a evolução do preço das quecas desde o Antigo Egipto até aos nossos dias.
História das línguas, devendo as alunas aprender latim, pedindo-se-lhes traduções d’Os Amores de Ovídio e do Satyricon de Petrónio. Mas isso porquê?, hão-de alguns reagir, por ser inteiramente inútil, visto elas não irem falar latim com ninguém. Justamente! Os altos estudos que não forem inúteis não merecem esse título.
Um outro tema interessante é a fonética histórica, a exemplo da evolução do vocábulo felácio, que vem do latim fellare, mamar, chupar. (…)
Biologia e biopsia dos sexos. Poderão recolher-se sexos congelados de serial killers, como dantes se fazia com as rãs nas aulas de física, dissecando-os habilmente para analisar a constituição do órgão. Com efeito, muitas mulheres vêem-se privadas do estudo atento do sexo masculino. Na medida em que fazê-lo com uma lupa é incómodo quando as paixões se põem de permeio, o pénis separado do corpo, ligado a eléctrodos que o tornem rígido, permitirá às nossas futuras doutoradas verem com detalhe o seu futuro ganha-pão.
Curso de poesia, a partir de Lamartine («Amemos, pois, amemos! Apressemo-nos da hora fugitiva! Gozemos!»), passando pelas Onze Mil Vergas de Apollinaire em versão ilustrada.
Vejamos, porém, o exame final. Quem deverá ser membro do júri? Nenhum homem, como é óbvio. Os homens são notoriamente incapazes de apreciar as qualidades intelectuais das prostitutas. Bem os conhecemos, estes grosseirões a quem basta ejacular; as qualidades das mulheres que com gosto falem de sexo não lhes interessam patavina. Exige-se pois um júri de mulheres. De preferência virgens, capazes de apreciar os matizes e a história antiga.
Como em todos os doutoramentos, haverá uma prova escrita e uma prova oral. Na oral, a defesa pública da tese. Temas à escolha: «Papel da próstata na ejaculação masculina», «Taoísmo e virgindade nas grandes superfícies», «Reciprocidade na sodomia oriental», «Freud e fraude nas famílias burguesas», «Diferença entre sex-toy e ex-toy», etc.
Poderão talvez perguntar-me: serão as nossas doutoradas eficazes após esses estudos? Sem nunca terem tocado num cliente? Claro que não. Mas são os nossos futuros ministros mais eficazes, só por saírem das melhores universidades? Deixemo-nos de brincadeiras: claro que não. E sabem os economistas alguma coisa que valha a pena? Claro que não. E serão os padres puros? Claro que não. E serão ricos os banqueiros? Claro que não, visto emprestarem o dinheiro que não têm. Valha-nos deus, as ideias feitas que para aí vão!
Por conseguinte, estas jovens, doutoradas em prostituição, tal como todos os que saem das grandes universidades, bem podem lá voltar cem vezes que nunca hão-de compreender seja o que for deste mundo e das pessoas. Quero eu dizer: do mundo verdadeiro e das pessoas reais.
Entretanto, a Liga dos Direitos do Homem, temendo uma injustiça, põe-me a seguinte questão: haverá ou não doutoramentos em chulice? Creio que isso se impõe. Porque se trata também de uma profissão que exige discernimento, coragem, noções de medicina (como malhar sem deixar marcas), de informática (como montar uma rede de call-girls), de direito (como contar atoardas sobre os roubos às raparigas). Tudo se aprende. Tudo merece respeito. Tudo é difícil.
Quanto ao doutoramento em prostituição, estamos conversados. As aulas para o doutoramento em práticas de tubarão efectuam-se todos os dias nos anfiteatros das Bolsas e dos bancos mundiais. Porque, como desgraçadamente bem sabem os etólogos, a finança é a fêmea do tubarão. Por instinto.

2 comentários:

m. joão macedo disse...

bem vindo amigo Júlio Henriques!
Há muitos anos que não nos vemos...o texto é muito bom para discussão.
abraço

M. João Macedo

Anónimo disse...

não conheço o J. Henriques mas já li algumas coisas que ele traduziu e por isso muito lhe agradeço. quanto ao texto:
"Do ponto de vista libertário, a abolição da prostituição sexual impõe-se com a mesma exigência ética e política que qualquer outra forma de relação alienada, que qualquer outra forma de miséria espiritual."
mas não quer isto dizer precisamente que a prostituição deve ser encarada como o exercício de mais uma profissão especializada (relação alienada, miséria intelectual) no contexto da sociedade capitalista?
percebo, acho, o ponto de vista do J. Henriques neste texto, mas tenho mais dificuldade em perceber aquilo da proibição da prostituição no mesmo patamar da da escravatura. creio que há diferenças entre as duas coisas. ou então, é preciso dizer que a escravatura também não acabou, que apenas tem um novo nome...
cumprimentos,