Militante antifascista nos tempos duros da repressão Salazarista. Defensor dos presos políticos nos tribunais plenários. Fundador do MES. Secretário-geral do Partido Socialista. Certamente o secretário geral mais à esquerda na historia do PS. Presidente da Câmara de Lisboa em nome da unidade da esquerda. Verdadeiro responsável pela possibilidade de união das esquerdas num projecto de governação. O mais inovador e progressista presidente da Câmara de Lisboa. Foi ele que introduziu uma forma de governar a cidade em que o planeamento prevaleceu sobre o curto prazo, as obras faraónicas para iludir o pagode e ganhar eleições. Um exemplo que não teve, infelizmente, seguidores à altura. Presidente da República eleito pela união das esquerdas. Presidente da Câmara e da República por decisão política pessoal tomada sem acordo prévio do PS. Fundamental no combate pela independência de Timor. Defensor de uma Europa solidária com os refugiados, desde os sírios aos afegãos mais recentemente. Impossível sintetizar num pequeno texto a importância da sua obra política e as diferentes dimensões que ela revestiu.
Um grande português que deu um notável contributo para o derrube do fascismo e a construção de uma democracia comprometida com a promoção da justiça social.
Presto-lhe a minha singela homenagem. Fazem falta pessoas desta dimensão na vida política portuguesa.
Se o Tribunal Constitucional fizer o disparate de ilegalizar o CHEGA, imediatamente veremos colunistas do Observador e moções ao congresso do CDS-PP a defender a alteração do artigo 46º da constituição. E quase que aposto que grande parte das sugestões de alteração não serão para retirar a proibição de associações racistas ou fascistas, mas para alargar essa proibição a outras ideologias.
Talvez; ou talvez não. Regressando ao que já disse na publicação inicial, depende muito do que se considere ser o motivo para se selecionar, para a entrada na universidade, os alunos com melhores notas no ensino secundário (ou nos exames correspondentes). É que há pelo menos duas razões possíveis (ainda que não necessariamente incompativeis) para isso, mas, a meu ver, com implicações bastante diferentes no que diz respeito a este assunto.
Uma é assumir que no ensino secundário se aprendem "bases", que vão servir para se aprender melhor o que vai ser ensinado na universidade, logo fará sentido escolher os que têm melhores "bases", porque são esses que em principio vão aprender melhor na universidade. E aí, realmente as quotas para as piores escolas serão tentar tapas o sol com uma peneira, já que esses alunos provavelmente irão ter grandes dificuldades na universidade (por lhes faltarem as tais "bases").
Mas outra hipótese alternativa é achar que, na verdade, muito do que se aprende no ensino secundário pouco ou nada interessa verdadeiramente na universidade, ou talvez até seja contraproducente (p.ex., suspeito que seria mais fácil aos professores das faculdades de economia ensinarem a teoria da vantagem comparativa se os alunos não passassem o ensino secundário a aprender, em economia e história, modelos baseados na teoria da dependência e em sistemas "centro-periferia", ou que o Tratado de Methuen é a causa do atraso económico português) - e realmente já ouvi falar de professores universitário´rios que se queixam que passam os primeiros meses a ter que "des-ensinar" o que os alunos aprenderem no secundário). Para essa hipótese, o verdadeiramente interessa é escolher alunos com características pessoais intrínsecas (provavelmente uma mistura de inteligência, esforço e curiosidade intelectual) que levam a um bom desempenho académico, e escolher os com melhores notas no secundário ou nos exames é apenas porque é a melhor maneira de medir essas combinação de fatores - ou seja, o curso de Matemática Aplicada à Economia e à Gestão até poderia selecionar os seus alunos com um exame de aramaico (ou um exame em aramaico sobre formigas parasitas) que iria acabar à mesma por selecionar os melhores alunos. E, se formos por aí, as quotas já não são uma "fita preta", sem resolver o verdadeiro problema, ou uma espécie de adulteração dos resultados - será ao contrário: a existências de "boas" escolas é que é uma espécie de batota (parecida com tomar doping numa corrida), que distorce o sinal, porque aí as notas já não medem apenas aquilo que verdadeiramente se quer medir (o potencial de cada aluno), passando a estar contaminadas por um fator adicional (a qualidade da escola frequentada); e assim quotas por escola ou um mecanismo similar são uma forma de corrigir esse ruído e medir o que verdadeiramente se quer medir.
(Suponho que na realidade haja uma mistura dos dois efeitos)
E agora mais uma ideia que me ocorre (e com isto que vou escrever agora arrisco-me a ser expulso da esquerda sem sequer me fazer mais bem visto na direita): de vez em quando surgem noticias dizendo que os alunos das escolas públicas, tendo em média piores notas à entrada, depois têm melhores resultados na universidade que os oriundos das escolas privadas; uma possivel explicação para isso é que as escolas privadas sejam mesmo melhores (glup!) que as públicas, mas que o tal segundo efeito seja predominante (isto é, as características dos alunos interessem mais que as tais "bases"), o que leva a que, ceteris paribus, um aluno universitário vindo da escola pública seja mais inteligente/esforçado/interessado/etc. (já que precisou mais dessas qualidades para ter uma boa nota, exatamente por a escola não ser tão boa) que um vindo de uma privada, e por isso tenha naturalmente depois melhores resultados.
Mas o que eu suspeito é que esta medida (que beneficia toda a gente que vive em zonas "problemáticas", seja qual for a sua raça) acaba por se tornar menos popular do que seria exatamente por ser apresentada como uma medida "contra o racismo".
O Matthew Yglesias tem falado muito disso no blogue dele: que a esquerda norte-americana moderna (e pelo vistos também a europeia), perante propostas que são boas para TODOS os desfavorecidos, tem o hábito de defendê-las enfatizando que beneficiam os negros e as minorias (e que, portanto, quem se opõe a elas é objetvamente racista); mas que provavelmente essas propostas seriam mais populares se os seus defensores NÃO enfatizassem o ângulo racial e falassem só de pobres e ricos (exemplo).
Afinal, por norma há mais pessoas nas classes "baixa" e "média-baixa" do que pessoas de minorias étnicas.
"De qualquer maneira, muita gente irá objetar a esta proposta com a conversa do "mérito", mas basta ver a atenção com que se olha para os rankings escolares divulgados anualmente ou as guerras para conseguir ter os filhos colocados em certas escolas para se concluir o desempenho escolar não depende apenas do mérito individual (aliás, as pessoas que estão sempre a falar do "mérito" parecem-me ser também as que mais importância dão aos rankings escolares, numa contradição aparente), ...
Ainda a respeito do "mérito", algo que implicaria uma reflexão é qual o porquê de atribuir as vagas na universidade aos alunos com melhores notas; parece óbvio e intuitivo, mas exatamente por isso se calhar ninguém pensa seriamente qual é o motivo para tal. Eu consigo imaginar pelo menos 3 motivos, que têm implicações diferentes:
a) Escolher os melhores alunos porque estes têm mais bases e portanto vão ter melhor desempenho no curso e na vida profissional posterior. Se o motivo for esse, aí faz efetivamente sentido escolher os alunos com melhores notas.
b) Escolher os melhores alunos porque estes provavelmente são mais inteligentes e/ou mais esforçados e/ou mais interessados e portanto vão ter melhor desempenho no curso e na vida profissional posterior. Esta explicação difere da anterior porque não requer que o que os alunos aprenderam no secundário tenha alguma utilidade real na licenciatura/mestrado/profissão, é apenas uma maneira de selecionar os mais inteligentes/esforçados/interessados (para medir inteligência ou esforço nem será necessário que a matéria do secundário tenha alguma coisa a ver com a matéria da licenciatura, mas acho que para medir interesse já o será). Se o motivo for esse (avaliar mais a personalidade do candidato do que os seus conhecimentos) aí faz todo o sentido um sistema de dê prioridade aos alunos de meios em que é mais difícil ter bons resultados escolares: quase por definição, para um aluno de uma "má" escola conseguir um 18 num exame, precisa de mais esforço/inteligência/motivação do que um de uma "boa" escola (e se não for assim, quer dizer que os pais que andam a pagar fortunas para os filhos ficarem numa "boa escola" privada ou a meter cunhas para eles ficarem numa "boa escola" pública estão a ser vítimas de uma burla em larga escala).
c) Escolher os melhores alunos é uma forma de levar os alunos no secundário a se esforçarem (e os país a obrigá-los a esforçarem-se) e a aprenderem o que lhes é ensinado - mesmo que grande parte não vá para a universidade, o que aprenderam vai ser útil tanto a eles como à sociedade em geral (e atenção que com "útil" não me estou a referir apenas ao aspeto económico). Mas aí também não vem mal ao mundo se se introduzir um sistema qualquer de compensação a quem venha de meios desfavorecidos, já que o entrar ou não na universidade continua, naquilo que o individuo pode controlar, a depender do seu esforço..."
É um facto que praticamente toda a gente que morre com covid tem outras patologias; mas não é claro o que é que os que estão sempre a insistir nisso querem dizer:
a) que, para quem não tenha comorbidades, o perigo de morrer de covid é quase nulo e que só está em risco quem tenha também outras doencas? ou
b) que para toda a gente o perigo de morrer de covid é quase nulo e mesmo os mortos com covid morreram por causa das outras doenças, não do covid?
A propósito dos 100 anos do PCP, surgem muitas discussão deste género, com uns a dizerem que o PCP foi quem mais lutou pela democracia e outras dizerem que queriam era pôr outra ditadura no lugar. Um problema que vejo nesta discussão é que há um vasto continuo de posições intermédias entre "derrubar o fascismo para implementar a ditadura do proletariado" e "derrubar o fascismo para implementar a democracia burguesa". Aliás, grande parte das divisões internas no PCP durante e ditadura (e no movimento comunista internacional nos anos 20/30) tinham a ver exatamente com que posição assumir nesse continuo.
Explicando melhor:
a) "O plano é derrubar o fascismo e implementar a ditadura do proletariado"
b) "O plano é derrubar o fascismo e implementar a ditadura do proletariado, mas se quando chegar a altura só for possível a democracia burguesa, mesmo assim já se ganhou qualquer coisa"
c) "Para já temos que derrubar o fascismo; depois na altura logo se vê se há condições para avançar para a ditadura do proletariado ou se devemos ficar pela democracia burguesa"
d) "O plano é derrubar o fascismo e implementar a democracia burguesa, porque para já não há condições para ir mais longe do que isso; depois, se as condições mudarem, poderemos mudar o plano"
e) "O que foi combinado em Yalta é para respeitar - nada de revoluções socialistas na Europa ocidental; o plano é implementar regimes de orientação socialista em Angola e Moçambique e mal isso esteja assegurado, aceitar a democracia burguesa em Portugal"
f) "O plano é derrubar o fascismo e implementar a democracia burguesa"
Isto é, as opções não são só a) e f), e há uma vasta área cinzenta entre lutar pela "ditadura do proletariado" e lutar pela "democracia burguesa".
O que causa esta área cinzenta é que a ordem de preferências dos comunistas ortodoxos (e mesmo de quase todos os heterodoxos, já agora) é "ditadura do proletariado" > "democracia burguesa" > "fascismo"/autoritarismo conservador, ou seja, preferem mesmo a "democracia burguesa" ao "fascismo", e por isso na prática não há uma distinção rígida entre lutar pela "ditadura do proletariado" e lutar pela "democracia burguesa".
Diga-se que aí há um contraste entre os comunistas e alguns extremistas de direita - enquanto os comunistas (os ortodoxos e quase todos os heterodoxos) vêm a "democracia burguesa" como a segunda melhor opção, entre a extrema-direita há alguns (se calhar não tão poucos como isso) que parecem achar que a democracia liberal é pior que os regimes comunistas (e sobretudo os regimes comunistas tal como realmente existiram, já sem o internacionalismo e o progressismo cultural - e talvez mesmo a influência dos intelectuais judeus - do tal "verdadeiro socialismo") - compare-se a luta do PCP contra o Estado Novo com a apoio de muitos nacionalistas russos à linha dura do PCUS no final dos anos 80, ou dos nacionalistas sérvios a Milosevic.
Para começar, digo que vi o filme deveria ser um pré-adolescente e nunca li o livro todo de seguida (li pedaços umas três vezes - acho que, em conjunto, acabei por o ler todo, mas não tenho certeza absoluta) - e antes de escrever este post, fiz uma revisão por alto do filme e do livro, mas é sempre possível que me tenha escapado alguma coisa.
Há sobretudo dois pontos em que o filme parece-me muito mais "o verdadeiro animalismo é uma maravilha, e tudo o que correu mal foi culpa de Napoleão que atraiçoou a revolução e os principio de Major":
No livro já começa a haver sinais de degeneração suína logo desde o principio - é dito explicitamente que os porcos não trabalhavam mas orientavam os outros animais, começam a ter uma sala só para eles e leite começa a ser utilizado para fazer uma mistura também destinada aos porcos.
No livro, também é decidido tirar os cachorrinhos aos pais e entregá-los à guarda de Napoleão, o que se vem a revelar decisivo para a narrativa
No filme, não se vê quase nada disso - efetivamente, não se vê os porcos a trabalharem (com uma exceção - ver mais à frente), mas a única coisa que é dita explicitamente é que os porcos conseguiam arranjar solução para qualquer problema que aparecia (o que é compatível tanto com serem administradores formais, como com serem simplesmente animais com os mesmo estatuto outros mas mais criativos na altura de solucionar problemas); quem veja o filme antes ou sem ler o livro provavelmente nem reparará que quase não se vê os porcos trabalhando; os porcos também não parecem ter qualquer privilégio económico: embora Napoleão e Squealer bebam o leite ordenhado das vacas, está subentendido que o fazem contra as regras da quinta, já que se vê eles a olharem cuidadosamente em volta antes de beberem o leite - e ainda por cima antes eles estiveram carregando os baldes de leite, pelo que até temos porcos fazendo trabalho físico (como digo, quem veja só o filme, simplesmente pensará que, tal como se vê as aves e o cavalo a apanhar trigo e duas ovelhas a reconhé-lo, também haverá porcos fazendo outros trabalhos algures na quinta).
Os cachorinhos também parecem ter caidos nos cascos de Napoleão de forma totalmente subrepticia - quando os animais visitam a casa de Mr. Jones, Napoleão encontra os canitos e leva-os às escondidas para um armazem (provavelmente os outros animais nem sequer sabem que os cães existem).
Assim, no filme, o golpe de estado quinta dos 34 minutos e 20 segundos surge como algo completamente exógeno e como que caído do céu - a assembleia dos animais está em reunião, com Bola de Neve a falar, e de repente uma carrada de cães educados por Napoleão invade a assembleia, expulsa (e provavelmente mata) Bola de Neve, e Napoleão anuncia que a assembleia já não se vai mais reunir e que agora ele é que manda; no fundo não é muito diferente do que se fossem invadidos e conquistados por uma quinta vizinha e não por um dos próprios.
Ou seja, no filme os animais vivem no "verdadeiro animalismo" desde a revolução de 13:30 até ao golpe de 34:20, e de súbito é instalada a ditadura de Napoleão, como um processo completamente externo e sem raízes já na sociedade logo a seguir à revolução. O Velho Major e Bola de Neve são os heróis e Napoleão o mauzão que estragou tudo (leia-se "Lenine e Trotsky eram os bons, e Estaline estragou tudo").*
A outra grande diferença é o fim - enquanto o livro tem um fim pessimista, com os humanos e os porcos a se tornarem indistinguíveis e os outros animais a olharem para eles, o filme tem um happy end, aparentemente com o triunfo da "revolução política" (isto é, os outros animais a se revoltarem contra os porcos) e possivelmente com o regresso ao "verdadeiro animalismo" do principio do filme (a menos que desse origem a uma sequela "O Trunfo dos Equídeos"...). Ou seja, no livro a conclusão lógica seria que a revolução dos animais foi uma perda de tempo (e, aliás, há passagens em que o burro dá a entender isso logo, mesmo logo no principio); já no filme, a revolução acaba por ser vitoriosa, mesmo que com alguns contratempos pelo meio. Pondo de outra maneira - é muito mais provável que um espetador do filme venha a simpatizar com revoluções do que um leitor do livro (e nesse aspeto se calhar o filme até é mais fiel à intenção original do autor de que o livro).
* E aqui alguém que seja ou tenha sido trotskista dirá que no trotskismo não há nada de exógeno ou de "a culpa foi de Estaline" na análise da degeneração da Revolução Russa; a teoria é que (até como marxistas que se prezem) foi o resultado das contradições internas derivadas do atraso económico e do isolamento internacional da União Soviética e que a vitória de Estaline foi mais o resultado do que a causa desse processo. Sim, mas eu estou pensado menos na ideologia formal conhecida por "trotskismo" e mais naquela espécie de radicalismo de esquerda em versão popularizada, que assenta em achar que a Revolução de Outubro foi boa e que o Estaline foi mau, mas não necessariamente com grandes sistematizações teóricas
Para perceber isso melhor, vamos por partes; temos basicamente 3 sectores económicos:
a) sectores que não necessitam de grande contacto interpessoal presencial, e que continuaram a trabalhar
b) sectores que foram considerados essenciais, e que continuaram a trabalhar
c) sectores que fecharam
O sectores a) e b) na prática são iguais, portanto não os vou distinguir mais ao longo do post; a grande questão aqui é o que fazer às pessoas dos sectores c).
Entre os defensores da "abertura" são frequente argumentos como "ir comer ao restaurante é uma despesa essencial - para quem trabalha no restaurante" ou "podiamos fazer ginástica em casa, mas os preparadores fisicos dos ginásios também precisam de viver"; um contra-argumento imediato que aparentemente poderia ser feito era dizer que as pessoas que iriam comer ao restaurante podem sempre de vez em quando mandar para o NIB do restaurante uma transferênca bancária no valor da refeição que iriam fazer, os clientes dos ginásios continuar a pagar as mensalidades, etc, etc. e em termos de distribuição do rendimento ficaria tudo na mesma - os trabalhadores dos sectores a)+b) deixavam de comprar produtos c), mas continuavam a mandar aos trabalhadores dos sectores c) o mesmo dinheiro que antes gastavam lá.
Claro que ninguém ou quase ninguém vai voluntariamente fazer isso - mas há dinheiro para se fazer isso: afinal, as pessoas dos sectores a)+b) estão provavelmente a poupar muito dinheiro, já que deixaram de fazer despesas nos sectores c) (e duvido muito que tenha havido grande redirecionamento de despesas para outros sectores) - como o aumento da poupança dos sectores a)+b) seria possível compensar parte da quebra do rendimento dos sectores c) (não toda - as receitas dos sectores "c" incluíam não apenas as despesas dos sectores "a+b" em produtos "c", mas também os "c" a comprarem coisas a outros "c" - mas grande parte). Agora, se as pessoas dos sectores "a+b" não contribuírem voluntariamente para sustentar as dos sectores "c", que medidas se podem tomar?
- lançar um imposto extraordinário aos "a+b" para financiar os "c" (como os "a+b" têm menos despesas do que tinham, teriam dinheiro para pagar esse imposto)
- o estado endividar-se para pagar o tal subsídio aos "c" (como os "a+b" aumentaram a sua poupança, em principio haverá dinheiro disponível nos mercados de crédito para financiar esse deficit)
- o BCE imprimir dinheiro para pagar o tal subsídio aos "c" (como muita gente está a acumular dinheiro sem o gastar, essa impressão de dinheiro - se fosse em valor correspondente ao aumento da poupança - não iria causar inflação)
[Note-se que no fundo, todas estas variantes seriam a mesma transferência de dinheiro que no caso da família que todos os sábados ordenasse uma transferência bancária de 80 euros para o seu restaurante de peixe grelhado favorito, apenas feita por meios coercivos e generalizados]
Outra questão seria como identificar as pessoas "c", que perderam rendimentos devido ao fecho da economia (o que inclui não apenas as que ficaram sem emprego mas também - e essas são mais dificeis de identificar - as que deixaram de arranjar emprego por causa da pandemia e/ou da quarentena) - mas na prática o melhor seria continuar com a natureza do que se tem feito (alargamento dos subsídios de desemprego, lay-offs, subsidios às empresas que pararam), mas com a dose reforçada (em termos de dinheiro e abrangência).
Tenho estado a pensar - durante quanto tempo o mundo vai continuar a chamar ao país "Myanmar" e aos seus habitantes "birmaneses" (e a usar "birmanês" como adjetivo para "referente a Myanmar")?
Bem, por outro lado, também é que se passa com os Paises Baixos e os "holandeses", e de certa maneira também com os Estados Unidos e os "americanos" (e, regressando à antiga Índia britânica, nem sei bem que nome se dá coloquialmente as habitantes do Sri Lanka ou do Bangladesh).
Tentei investigar também alguma coisa sobre o assunto - o que fiz foi tentar comparar as variações entre as votações nas legislativas de 2019 e nas presidenciais de 2021 (dados extraídos com isto).
Resumo para quem não queira ler o post todo - tanto no conjunto do país, como sobretudo no tão falado Alentejo, os eleitores de Ventura parecem ter vindo sobretudo do PSD, do CDS e/ou do PS (suspeito que dos primeiros dois), e muito pouco do PCP/CDU.
"A cigarra, cujo canto longo e agudo enche os dias do Verão, tem uma probóscida libadora comprida como um estilete, com a qual consegue perfurar a casca das árvores e sugar a seiva. Outros insectos, mais mal equipados, acabam por se aproveitar da faculdade da cigarra. Enquanto ela bebe, congregam-se à sua volta formigas, vespas e moscas, que recolhem os minúsculos fiozinhos que escorrem da ferida feita na árvore"
Uma coisa que tenho notado é que, comparado com o início da pandemia, parece ter havido uma quase total inversão de posições entre covid-falcões* e covid-pombas* sobre a questão dos eventuais "falsos positivos".
A partir de certa altura houve uma inversão, e passaram a ser os covid-pombas a insistir na questão dos falsos positivos (a inversão não é total, porque há uma subtil diferença: parece-me que os covid-falcões insistiam mais nos falsos positivos nos testes serológicos - que supostamente vêm ser a pessoa já teve covid - enquanto os covid-pombas falam sobretudo nos falsos positivos nos testes PCR - que supostamente vêm se a pessoa tem, neste momento, covid); diga-se que, sinceramente, essa ênfase dos covid-pombas nos falsos positivos me parece um bocado irracional - a mim parece-me que, se existirem efetivamente muitos falsos positivos, isso significa que a situação é mais grave do que parece, já que
a) a taxa de mortalidade será maior do que as estatisticas dizem (já que o denominador estará inflacionado)
b) estamos mais longe da imunidade comunitária do que se julga
c) se calhar quer dizer que o ritmo de crescimento da doença é maior do que se julga (este último ponto não tenho tanta certeza, mas dá-me a ideia que, quanto menos gente estiver realmente infetada, maior será a proporção de falsos positivos entre os "diagnosticados"; um corolário disso prece-me ser que se o número de realmente infetados estiver a crescer, os falsos positivos farão o crescimento percentual dia-a-dia parecer menor do que o crescimento real)
[Atenção que estes pontos só são relevantes para quem acredita que, ainda que com muitos falsos positivos, a covid-19 existe realmente; para quem ache que a covid-19 nem sequer existe e que todos os casos são falsos positivos, estas objeções que apresento realmente não se aplicam]
Dito isto, tenho esperança que a maioria dos assintomáticos sejam verdadeiros assintomáticos e não falsos positivos, por uma razão - se fossem sobretudo falsos positivos, já teríamos tido muito mais casos de aparentes reinfeções, nas variantes "falso positivo antes - falso positivo depois", "falso positivo antes - verdadeiro positivo depois" ou "verdadeiro positivo antes - falso positivo depois"; no entanto as reinfeções parecem ser bastante raras (e normalmente são consideradas noticia de jornal, de tão raras que são); ou será que há alguma política de só em casos limite fazer testes a ex-infetados (o que faria haver menos supostas "reinfeções")?
*para quem não perceba bem esta terminologia, com "covid-falcões" refiro-me ao que os covid-pombas normalmente chamam "covideiros", e com "covid-pombas" refiro-me ao que os covid-falcões normalmente chamam "covidiotas"
É possível que estejamos a assistir aos últimos dias ou horas do regime constitucional nos EUA; mas tirando isso, vamos lá ver os resultados das tais votações de ontem:
É frequente os defensores do RBI falarem muito das experiências-piloto, seja para sugerir que sejam feitas para ver se resulta, seja usando o exemplo das já realizadas para argumentar que o RBI funciona.
A mim, não me parece que essas experiências-piloto sejam assim tão relevantes - porque o problema principal de um RBI não é o subsídio em si: é mais ou menos "Economia Neoclássica 101" que um subsidio uniforme (portanto, sem aquele efeito "se aceitar este emprego, perco o subsidio e fico ainda pior do que estava") não tem efeitos distorcedores na economia, portanto não há nada de particularmente surpreendente nessas experiências que aparentemente demonstram que o RBI "funciona".
O problema do RBI são os impostos necessários para o financiar, que, esses sim, podem ter custos económicos significativos - e para avaliar esses efeitos as experiências-piloto normalmente não interessam muito, já que (exatamente pela sua natureza de experiências-piloto) não implicam nenhum aumento significativo da despesa pública nem da carga fiscal (aliás, muitas, nomeadamente em países pobres, até são financiadas por instituições privadas), portanto nunca chegam a experimentar a parte realmente perigosa do RBI.
O "Inspetor Harry" na direita autoritária não tem grande dúvida, acho.
O "Zé Gato" na esquerda autoritária admito que já seja mais forçado, mas é o melhor que arranjei - muitos episódios (e a música do genérico) têm o tom "os criminosos escapam porque são ricos e influentes e mexem cordelinhos para a polícia não lhes poder tocar", que será a mensagem que se espera de um filme policial de esquerda autoritária (enquanto a direita autoritária preferirá "os criminosos escapam por culpa dos advogados, desses leis fofinhas que fizeram e dos jornalistas que estão sempre contra a polícia"); fala também muito da pobreza e da forma como esta leva ao crime, o que reforça a parte do "esquerda"; admito que a parte do "autoritário" é discutivel - se por um lado tem a mensagem de "os bandidos safam-se sempre" e o protagonista frequentemente entra em modo "policia durão", por outro nalguns episódios os seus inimigos são grupos de "vigilantes" ou polícias que perseguem e chantageam ex-reclusos (mas por aí também o "Inspector Harry" safava-se...). Provavelmente é difícil fazer um policial "esquerda autoritária" puro: não é muito fácil conciliar as ideias "é preciso mão pesada" e "as injustiças sociais do capitalismo contribuem para o crime"; bem, é a ideia do slogan blairista "duro com o crime e com as causas do crime", mas acho difícil usar isso como inspiração artística (demasiado complexo e com demasiada nuance). Uma alternativa seriam filmes a mostrar o antigo bloco de leste a ser infestado por criminosos em consequência do fim do comunismo (eu nunca vi o "Inferno Vermelho", mas tenho a ideia que parte do enredo gira à volta da ideia que a perstroika estaria a causar criminalidade galopante na URSS - talvez este servisse como exemplo?).
"Os Anjos de Charlie" na direita libertária porque uma ideia-base da série (a começar pela narrativa do genérico) parece ser de que pessoas de grupos historicamente discriminados (como mulheres) terão mais hipóteses no mercado livre do que no setor público; e o perfil de "Charlie" (rico e com um estilo de vida libertino) também encaixa bem aí (mesmo a sua natureza de "jiggle show" parece-me algo que a direita libertária verá melhor que qualquer dos outros três quadrantes). Para reforçar a componente "libertária", junte-se alguns episódios do tipo (pegando num género bastante popular nos anos 70...) "as detetives infiltram-se em prisões para mulheres em que as reclusas são mal-tratadas pela administração". E tenho a ideia que num episódio uma das detetives até diz algo como "o Charlie não nos vai despedir porque teria que pagar mais a quem nos fosse substituir", o que parece o Gary Becker a falar da discriminação.
[Eu já tinha começado a escrever este post quando vi um episódio em que as detetives foram ajudar um xerife de uma pequena cidade que tinha sido proibido de se aproximar de um suspeito porque o tinha agredido, ou coisa assim (não cheguei a perceber bem); isso era apresentado como um erro de que o xerife estava sinceramente arrependido, mas mesmo assim pensei se não poria em causa as credenciais "libertárias" da série; mas logo num episódio pouco depois desse "os maus" eram policias que plantavam provas para incriminar suspeitos e as detetives tiveram grandes dúvidas de consciência se deveriam denunciar alguém aparentemente envolvido em crimes sem vítima, portanto mantive a qualificação]
"Jogo de Audazes" na esquerda libertária - um grupo de vigaristas, que são contratados por pessoas que foram vigarizadas ou prejudicadas por indivíduos ricos e poderosos para os vigarizar a eles; e ainda por cima no episódio final o golpe é roubar informação secreta sobre os banqueiros responsáveis pela crise de 2008. Fundamentalmente, uma série no modelo "bons fora-da-lei que defendem os fracos contra os ricos e poderosos"; com o bónus da maior parte da série passar-se em Portland, Oregon (uma espécie de capital "antifa"?) e pelo menos alguns dos heróis parecerem-me ter um típico estilo de vida hipster.
"Rookie" - eu pus no centro, mas onde eu o associo mesmo é aquele centro-esquerda casal Clinton-Joe Biden-Kamala Harris, ao mesmo tempo culturalmente "progressista" e pró-"lei e ordem" - os bons são o departamento da polícia, mas dizendo explicitamente que a polícia é "diversa" (com muitas mulheres e minorias étnicas, e nalguns episódios refere-se mesmo o contraste entre esta nova polícia e os defeitos da velha polícia quase só de homens brancos) e por vezes até é dito que as testemunhas, mesmo que sejam imigrantes ilegais, não têm que ter medo de falar com a polícia porque é uma cidade-santuário e portanto não correm o risco de ser deportadas. E o episódio em que o personagem principal mata um suspeito é exemplar - ele é suspenso enquanto dura a investigação, os colegas comportam-se de maneira totalmente profissional com ele durante o inquérito (nem com grandes solidariedades nem grandes condenações) e no fim o inquérito concluiu que ele teve razão em disparar, acaba a suspensão e continua a sua carreira - é mensagem é claramente "a polícia moderna de Los Angeles tem um protocolo adequado e rigoroso para estas situações - nem se toleram abusos por parte dos agentes, nem os impedimos de fazer o seu trabalho"; compare-se com o típico filme/série de direita autoritária (em que o agente que teve que disparar seria apresentando como uma vítima dos advogados, da imprensa e/ou de agitadores, e os responsáveis da investigação interna apareceriam como uns cobardes que iriam, só por razões políticas, dizer que o polícia era culpado ) ou de esquerda libertária (em que os policias iriam aparecer como uma quadrilha, a se protegerem uns aos outros e até a adulterarem provas para safar o colega). E atendendo que é uma série recente (começou em 2018), aposto que estes fios narrativos não estão lá por acaso, e que a ideia é mesmo fazer uma série com polícias como heróis mas que não surja como "trumpista".
A dada altura, e pegando na ligação "Jogo de Audazes"-Portland, ocorreu-me se também não haveria uma ligação natural entre Los Angeles tanto com a "direita libertária" de "Os Anjos de Charlie" como com o "centro-esquerda" de "Rookie", na medida em que penso que é uma cidade culturalmente progressista (tipicamente californiana), mas sem o radicalismo político associado a São Francisco ou Berkeley. Mas depois lembrei-me que os filmes do inspetor Harry passam-se em São Francisco (e não, p.ex., no Texas...) portanto este determinismo geográfico não fará grande sentido, acontecendo simplesmente grande parte do audiovisual dos EUA ser produzido na costa Oeste.
Mas, mesmo assim, continua a parecer-me um sitio como a Califórnia dos anos 70 (que votou tanto em Reagan e na proposta 13 como em Jerry Brown para governador e ainda com muitos ecos da contra-cultura e da "New Age") era mesmo o local ideal para produzir uma série como "Os Anjos de Charlie".
Bem, pelo que eu me lembro, mesmo nos anos 70/80 a maior parte das séries policias eram tendo a polícia ou algo parecido como heróis ("Columbo", "Força de Intervenção", "Automan" - embora aí fosse um polícia largamente agindo à margem da organização, e que acho que nem tinha autorização para investigar - "Balada de Hill Street", "Miami Vice", "Os Profissionais", "Dempsey e Makepeace", "Crónica do Crime" e os nossos "Zé Gato" e "Uma Cidade como a Nossa"); mas também havia muitas à volta de detetives privados, como "Os Anjos de Charlie", "Devlin Connection", "Crime, Disse Ela", "Wolf", os "clássicos" ("Sherlock Holmes", "Poirot", os telefilmes do Perry Mason) ou os muito peculiares "Modelo e Detetive" e "Duarte e Cª".
Hoje em dia as séries policiais parecem andar todas à volta de polícias profissionais ("CSI", "NCIS", "Rookie", "Comissário Montalbano") ou então a variante (que já me parece um género em sim mesmo) "homem civil um bocado excêntrico ajuda mulher-polícia nas suas investigação, frequentemente com UST à mistura" ("Castle", "Perception", "Einstein", "Harrow", "Forever"), em que de qualquer maneira os heróis trabalham para a policia, com ou sem distintivo. A única série que me ocorre em que os heróis são algo parecido com detetives privados é "The Catch"* (em que, na minha opinião pessoal, os "maus" parece-me muito mais carismáticos que os "bons", mas enfim...).
A respeito disso, alguém comentou no meu Facebook que a "era dos detetives privados é anterior. Agatha Christie, Arthur Conan Doyle, Raymond Chandler. Os 70 já são um período de transição com os polícias rebeldes, Dirty Harry e Shaft à cabeça." (já agora, eu diria que o Zé Gato também tenta assumir esse papel), mas isso não afeta muito o sentido da transformação, apenas os detalhes da cronologia (mas já põe em causa a teoria da ligação ao Vietname).
O ponto original da discussão no Twitter, ocorrida no auge das grandes manifestações de maio/junho nos EUA contra o racismo e a brutalidade policial, era que as séries televisivas atuais, ao porem os policias "oficiais" (em vez de detetives privados) como heróis, contribuíam para que o público não contestasse abusos de autoridade feitos pela polícia (e começou com alguém a sugerir que se fizesse uma série tendo defensores oficiosos como heróis - o mais parecido com isso é capaz de ter sido o "Perry Mason"). Mas eu suponho que isso não acontecerá muito com as séries que seguem o modelo do "whodunnit" (como "CSI" ou "Castle"), em que ao longo do episódio vão surgindo suspeitos que tudo indica que são os culpados e minutos depois descobre-se que são inocentes e o suspeito principal passa a ser outro - afinal, se alguma coisa, acho que essas séries até tenderão a reforçar nos espetadores a ideia que todos devem ser considerados inocentes até prova em contrário, e a ter pouca simpatia por ideias como "dar-lhe umas chapadas para ele confessar".
* Entretanto lembrei-me também do "Sherlock", mas isso é para aí um episódio por ano...
A mim parece-me que ele está simplesmente usando "fascismo" quase como uma palavra genérica para dirigismo estatal (ou pelo menos, para dirigismo estatal mantendo a propriedade privada dos meios de produção), o que, a ser assim, se calhar tornaria "fascistas" a maioria das sociedades existentes nos últimos milhares de anos, com um hiato no século XIX e princípios do XX (bem, excluindo, a ter existido, o "modo de produção asiático", já que aí o estado também era suposto ser o proprietário das terras; mas o chamado "MPA" provavelmente nunca foi mais do que a mesma coisa que o feudalismo europeu visto por um prisma "orientalista").
Um aparte (que não tem diretamente a ver com o texto de Ricardo Das de Sousa, mas acho que acaba por ter indiretamente): porque é que, quando se fala de Mussolini, cita-se muito mais vezes o "tudo no estado, nada contra o estado, nada fora do estado" do que o "abaixo o estado em todas as suas formas e encarnações: o estado de ontem, o de hoje e o de amanhã; o estado burguês e o estado socialista" ou "Nós somos liberais em economia mas não somos liberais em política"? Se se dizer que é porque a primeira (de 1925) é posterior à segunda (de 1920) ou à terceira (de 1921), isso não impede muita gente de ir buscar coisas ainda mais antigas (como o programa dos "Fascios" de 1918 ou a sua militância socialista até 1915) para fazer a exegese do fascismo....
O texto de Ricardo Dias de Sousa parece conter duas teses: a primeira é de que a planificação europeia no pós-guerra teria sido, na sua essência, "fascista"; a segunda é que no final dos anos 60 terá aparecido um novo tipo de marxistas, e que na sua rejeição do marxismo ortodoxo e do establishment do pós-guerra, acabar por, à sua maneira, ser também "fascistas".
Concluindo esta conversa, eu diria que há efetivamente alguma coisa em comum entre o fascismo e os estados sociais da Europa pós-guerra, nomeadamente a defesa de alguma espécie de estado social, a busca de um sistema menos liberal que o capitalismo do século XIX mas menos intervencionista (e mantendo a propriedade privada dos meios de produção) que o marxismo, e a colaboração entre o estado, os sindicatos e o patronato - mas diferem radicalmente na questão do líder autoritário versus democracia bastante negociada, e largamente também na do conforto material versus vida heróica e gloriosa.
Se comparada com as versões mais extremas da "nova esquerda", o fascismo tem algumas semelhanças na parte de um certo anti-materialismo (os esquerdistas dizem que são contra o "consumismo" e não contra o "materialismo", mas isso é em parte semântica) - uns em nome das virtudes heróicas e militares, outros em nome do trabalho criativo e da auto-expressão (parece muito diferente - ou talvez o oposto, para quem esteja habituado a filmes com o argumento "o pai quer que o filho vá para os fuzileiros, mas ele quer seguir Belas-Artes" - mas ambas as atitudes têm em comum a ideia de que a atividade humana deve ser motivada por algo "superior" a ganhar dinheiro e de recusa da supostamente monótona vida "burguesa"), mas a oposição é ainda maior no que diz respeito a questões de respeito pela autoridade ou por hierarquias (que a nova esquerda tendia a rejeitar ainda mais do que os democratas do pós-guerra), ou do pessimismo histórico dos fascistas (que tendem a ver a civilização sempre à beira do colapso e a necessitar de ser salva por heróis) versus o utopismo da nova esquerda (dada a acreditar que a sociedade sem qualquer espécie de opressão ou frustração está ao virar da esquina).
Agora, eu há muito tempo que ando a pensar numa teoria (em parte uma versão alterada e aprofundada do "gráfico de Pournelle"), que um dia hei de pôr num post, dum esquema bi-dimensional, sendo uma dimensão romantismo vs. iluminismo (sim, sim, esta oposição é muito contestável), e a outra coletivismo vs, individualismo (outra oposição muito contestável...), havendo uma grande tendência para alianças na diagonal (iluminismo-coletivismo e romantismo-individualismo de um lado, romantismo-coletivismo e iluminismo-individualismo do outro); neste esquema, o fascismo é uma variante de romantismo coletivista, o estado social de iluminismo coletivista e a "nova esquerda" já entra um bocado no romantismo individualista (o liberalismo fica no iluminismo individualista). E por isso quem for especificamente à procura, consegue encontrar semelhança do fascismo tanto com o estado social-democrata como com a "nova esquerda".
E agora vamos finalmente ao que interessa nesta sub-serie (os outros posts "3.x" foram apenas preâmbulos, acerca de pontos circunstanciais). Continuando com Ricardo Dias de Sousa:
Não eram conscientes que ao rejeitar o modelo soviético, abraçavam o socialismo fascista.
No contexto, fico sem perceber muito bem se ele se está a referir explicitamente aos grupos terroristas que refere atrás, ou à "nova esquerda" em geral. Se se está a referir aos primeiros, eu confesso que alguns nem percebo muito bem se, em termos de modelo de sociedade, tinham alguma diferença face ao modelo soviético. Mas, se se está referir à "nova esquerda" em geral, nomeadamente à que rompeu mais coerentemente com o modelo soviético, também não me parece que tivessem muito a ver com o "socialismo fascista".
Surgem na Europa vários grupos terroristas de esquerda como as Brigate Rosse em Itália, o Baader-Meinhof na Alemanha, o Provisional IRA na Irlanda, ou a ETA em Espanha. A componente nacionalista nestes grupos é evidente.
Para começar, vou pegar num ponto que até não tem exatamente a ver com a questão do "fascismo", mas é uma questão que até me interessa particularmente:
A partir de finais da década de 60, os intelectuais marxistas a Ocidente, confrontados com a falência definitiva do modelo soviético em Praga, deixaram de se interessar tanto pelos escritos da madurez do autor – o Marx materialista – para redescobrir os escritos da juventude – o Marx idealista, o Marx hegeliano, romântico, alemão.
As diferenças eram tão ténues, que o paradigma do Estado do Bem-Estar, o
modelo austro-escandinavo, foi implementado na Escandinávia por
sociais-democratas e na Áustria por democratas-cristãos. Ambos com mais
esqueletos fascistas na administração do que gostariam de admitir.
Um ponto especifico que Ricardo Dias de Sousa refere de semelhança entre os estados sociais do pós-guerra e o fascismo é "lugares nos conselhos de administração para sindicatos"; isso pode efetivamente ter sido parte do programa de 1919 dos "Fascios Italianos de Combate", mas pouco ou nada disso foi na prática implementado durante o tempo em que Mussolini esteve no poder (talvez nos 2 anos finais, na "República Social Italiana" - a "República de Saló" -, tenha havido algumas medidas nesse sentido, mas na prática é duvidoso que algo tenha ocorrido, até porque a "República Social Italiana" era largamente uma fantasia).
Continuando o post anterior, a maior semelhança aparente entre o fascismo e os estados sociais da Europa do pós-Guerra parece ser mesmo a política de concertação social (e, pelo menos no caso dos democratas-cristãos, essa politica talvez possa ter algum ADN comum com o corporativismo fascista, no sentido de em ambos se poder encontrar alguma influência do catolicismo social, e também do "nacionalismo integral" estilo Ação Francesa, que valorizavam as associações profissionais e a negação da luta de classes), de pôr o estado, os sindicatos e as associações patronais à mesma mesma para negociarem salários, férias, reformas, etc.
No entanto, há uma diferença fundamental, que nalguns aspetos até inverte o significado real de processos que formalmente parecem similares: o autoritarismo fascista, com a arbitragem obrigatória (ou algo muito parecido com isso) e a proibição das greves (não digo que isso por vezes também não acontecesse nalguns casos da Europa do pós-guerra, mas numa versão muito mais branda). E porque isso muda tudo? Porque um sistema de concertação social com direito à greve e em que sindicatos e associações patronais têm longas negociações até chegar a um acordo muito provavelmente dá mais poder ao "trabalho" do que teria num mercado livre; em compensação, num sistema em que as greves estão proibidas, e em que as negociações entre sindicatos e patrões funcionam mais na base de cada parte apresentar as suas exigências, e se não chegarem rapidamente a acordo, o representante do estado decide como vai ser, até pode dar à parte patronal mais poder que num mercado livre (se conseguirem que o estado se ponha do lado deles - mas há vários aspetos do sistema fascista que, por mais acima das classes digam que sejam, os acabam por levar mais para o lado do "capital" do que do "trabalho") - para um exemplo de como a política laboral da Alemanha nazi desequilibrou as relações laborais a favor do capital, ver o post de "pseudoerasmus" Nazi political economy.
"Quando a velha ordem democrática liberal foi restabelecida, o liberalismo já estava morto. Os americanos insistiram em eleições e a Igreja Católica aceitou o repto, patrocinando os partidos democratas-cristãos. Os partidos políticos, esses, organizaram-se em torno de velhos liberais, como Adenauer, Churchill, Blum, ou De Gaspieri. Eram homens nascidos noutro século, insuspeitos de simpatias fascistas, mas que lideravam hordas de jovens planificadores sem grande empatia pelo liberalismo dos seus maiores. A democracia salvou as aparências. Era o grande atestado de não-fascismo dos novos regimes. As opções políticas com chances de vitória nas urnas eram, essencialmente, duas: sociais-democratas à esquerda e democratas-cristãos à direita. Curiosamente, os resultados eleitorais seguiram, grosso modo, as velhas linhas divisórias do Tratado de Vestfália: os democratas-cristãos venceram nos países católicos e os sociais-democratas nos protestantes. Ambos, esquerda e direita, protestantes e católicos, brandindo os tais programas de planificação centralizada a que o eleitorado se acostumou antes da guerra. As diferenças eram tão ténues, que o paradigma do Estado do Bem-Estar, o modelo austro-escandinavo, foi implementado na Escandinávia por sociais-democratas e na Áustria por democratas-cristãos. Ambos com mais esqueletos fascistas na administração do que gostariam de admitir." (...)
"A partir da década de 80, quando finalmente [os socialistas]começaram a ganhar, decidiram, também eles, refugiar-se no intervencionismo fascista: Miterrand, Craxi, González, Soares e Papandreou, de quem se esperavam revoluções quando eleitos, rapidamente meteram o socialismo na gaveta. Os partidos socialistas converteram-se na primeira barreira contra o comunismo na Europa Ocidental. A amnésia de uns europeus que preferiam olhar para o futuro fez o resto. No processo, as pessoas foram convenientemente esquecendo que o fascismo era o Estado intervencionista."
"Na vertente económica, a principal diferença entre as duas planificações socialistas, a fascista e a comunista, era a obsessão comunista com quotas de produção. [negrito meu - M.M.] Os fascistas perceberam o fracasso soviético. Criaram grandes empresas públicas, mas grande parte da economia era gerida indirectamente, através de agências de supervisão e intervenção. Depois da guerra, o ímpeto planificador e intervencionista ganhou alento, embora com diferentes matizes: a França, mais influenciada por socialistas e comunistas, nacionalizou as principais indústrias, a Alemanha deixou a produção essencialmente em mãos privadas e o Reino Unido, que chegou tarde à febre planificadora através do governo trabalhista, foi o que mais se aproximou da planificação soviética. Como consequência, ali, o racionamento durou até meados da década de 50 para muitos bens essenciais."
É
frequente em eleições legislativas dizer-se "Votem no partido X para
Fulano ir para o parlamento, porque é preciso lá alguém da nossa
cidade/sub-região/região/etc. para defender os nossos interesses
específicos (e ele é o único num lugar potencialmente elegível)".
Mas parece que isso já não vale para outros agregados que não os geográficos.
O que se conclui logo daqui é que aquelas comparações que frequentemente se fazem entre o número de pessoas que morreram "de Covid" e o número de pessoas que morreram "de gripe" é um bocado comparar alhos com bugalhos; a contagem dos mortos "de gripe" não é uma contagem feita pessoa a pessoa, como com os mortos "de Covid"; é uma estimativa feita no fim do ano, comparando a evolução da mortalidade total e a evolução do número de casos de gripe ao longo do ano.
Durante a época de gripe 2018/2019 o nú- mero de óbitos por todas as causas esteve acima do esperado entre a semana 02/2019 e a semana 7/2019 (Figura 27 e Figura 28) 40. Aplicando um método de regressão cíclica foram construídas linhas de base que correspondem à mortalidade esperada sem o efeito de fatores externos e que permitem estimar os excessos de mortalidade por todas as causas pela diferença entre a mortalidade observada e a linha de base. Este cálculo foi efetuado para a população geral e estratificado por sexo, grupo etário e região de saúde. No total, estimou-se um excesso de 2.844 (IC95%: 2.229 a 3.459) óbitos em relação ao esperado, o que corresponde a uma taxa de 28 óbitos por cada 100.000 habitantes e a um excesso relativo à linha de base de 19 % (IC95%: 17 a 22 %). O excesso de mortalidade atingiu o seu valor máximo na semana 4 de 2019 (excesso relativo de 25 %).
(...)
Durante o período de excesso de mortalidade ocorreram dois eventos que podem explicar este aumento do risco de morrer. Nomeadamente, a epidemia de gripe sazonal cujo período epidémico decorreu entre as semanas 01/2019 e 09/2019, com um pico na semana 03/2019, e períodos com temperaturas mínimas abaixo do normal nos meses de janeiro e fevereiro de 2019 (Figura 30). Para estimar a mortalidade atribuível à epidemia de gripe e às temperaturas extremas, aplicou-se um modelo de regressão de Poisson de forma a modelar a taxa de mortalidade observada em função do índice Goldstein (taxa de incidência de síndrome gripal multiplicada pela percentagem de casos de síndrome gripal positivos para o vírus da gripe) e das temperaturas extremas, ajustada para a tendência e sazonalidade (Figura 31). Esta metodologia foi desenvolvida no grupo de trabalho FluMOMO 41 do projeto Europeu EuroMOMO 42.
Com base nesta abordagem, e considerando um histórico desde a semana 40/2013 até à semana 20/2019, estimaram-se 3.331 (IC95% 3.115 a 3.552) óbitos atribuíveis à gripe e 397 óbitos (IC95% 315 a 489) atribuíveis às temperaturas extremas.
Nos últimos tempos tem-se tornado quase um dogma da fé em certos meios que Trump, caso perca, se estará a preparar para "roubar" as eleições; como disse aqui, eu duvido muito desses cenários.
Atendendo que toda a carreira de Trump, desde pelo menos os anos 80, tem assentando no primado da imagem sobre o conteúdo (hum, será que acidentalmente acabei também por descrever os anos 80 no geral?), eu suspeito que o grande desejo dele não é tanto permanecer na presidência, mas poder dizer (e ter muita gente a acreditar) que é o presidente, e todas essas conversas dele a pôr em causa o processo eleitoral se destinam, não a preparar o terreno para um "autogolpe", mas a preparar o terreno para, se perder, poder passar 4 anos a apresentar-se aos seus convidados em Mar-a-Lago como "o verdadeiro Presidente dos EUA", vítima das conspirações do "deep state" (em vez de ser um "looser" que não conseguiu a reeleição). Até imagino facilmente daqui a uns anos uma gravação dele dizendo "When you’re the President - the real President-, they let you do it. You can do anything. Grab ’em by by the pussy. You can do anything."
O problema aqui é se parte da base Republicana (incluindo as milícias armadas e grande parte do corpo policial) leva o show dele a sério e tenta por sua iniciativa um "contragolpe" contra os "golpistas" no poder.
Já agora, ver este post de Noah Smith no Twitter e respetiva thread, onde ele sugere um cenário parecido (e muita gente acha que é mesmo o cenário mais provável).
Esta sequência de posts no twitter de Noah Smith, dizendo que afinal os maiores apoiantes de Trump não são os "boomers" (nascidos algures entre 46 e 64), mas sim a ala conservadora da "Geração X" (nascidos para aí entre 65 e 80), fez-me lembrar algo que há muito tempo estava a pensar escrever (este post estava nos rascunhos desde dezembro, ou seja, comecei a escrevê-lo ainda antes dos "boomers" entrarem na lista de espécies ameaçadas da WWF; depois deixei-o de molho exatamente porque o assunto tinha largamente sido abandonado).
É que desde para aí uns dois anos, parecia ter havido uma inversão quase total dos estereótipos ideológicos tradicionalmente associados à geração "boomer".
Isto é, de há uns tempos para cá, surgiu a ideia que os "boomers" seriam uma geração particularmente conservadora (exemplo) - quando eu passei toda a minha juventude a ouvir falar que a "geração de 60" (a geração de Gloria Bunker e Michael Stivic, e também a de Steven e Elyse Keaton) era A GERAÇÃO PROGRESSISTA por excelência, não apenas mais progressista que as anteriores (o que é normal) mas até que as posteriores (era esse o ponto da série "Quem sai aos seus..." - o contraponto entre a progressista "geração de 60" e a conservadora "geração de 80").
Já agora, cá em Portugal eu passei a minha adolescência com as escolas
secundárias dominadas pela JSD, e na primeira campanha eleitoral que dei
nota, o liceu estava a abarrotar de autocolantes "P'rá Frente
Portugal" - embora em Portugal houvesse a peculiaridade que a geração "progressista" não era tanto a dos nosso pais, mas sim mas sim um
misto de tios mais novos, primos afastados mais velhos e professores no
principio de carreira (o pessoal na casa dos 30 anos, que tinha sido
jovem nos nossos "anos 60" - 1974 e 1975; pelo menos uma prima afastada
minha, então com 30 e tal anos, consta que ex-simpatante do PRP e típica
"progressista nos costumes", era fã de uma série que havia na altura que
era "Os Trintões" e dizia que representava bem a geração dela; essa
série era por vezes descrita como o contraponto a "Quem sai aos seus..."). Sinais
da mitificação da "geraçao de 60": ainda me lembro de há muitos anos
(para aí em 1990) ter lido um artigo (penso que do João Martins Pereira,
o já falecido ex-marido da Fátima Bonifácio... - ou será que mesmo isto
é um exemplo da mudança do que se espera dum boomer?) que algures dizia
"todos as pessoas entre os 30 e os 60 anos tendem a descrever-se como
da geração de 60, grande abrigo anti-sismico mais seguro que as de 50 e
de 70"; e alguém se lembra de por volta de 1973 ter surgido (com o
impacto que teve) algum filme similar a "Os amigos de Alex", mas a
evocar os anos 50? (o mais parecido seria o American Graffiti, mas muito
longe - nem que seja porque o período que evoca é já o principio dos
anos 60). Isto talvez seja uma especificidade da
chamada "Geração X", mas nós crescemos a ouvir associar a geração de 60 à
geração dos contestatários e dos progressistas (sempre que havia um
protesto de estudantes nos anos 80, alguém falava em "regresso aos anos
60?"), pelo que agora me dá alguma dissonância cognitiva a conversa do
"OK Boomer"; por outro lado, també é verdade que "boomer" não é sinónimo
de "geração de 60" - se adotarmos a definição de "nascido entre 1946 e
1964", isso incluirá também muitos dos então tão atacados yuppies dos
anos 80 (mesmo o Alex P. Keaton era suposto, in-universe, ter nascido em
1965, logo só não seria um boomer por um ano). Nota 1: suspeito que nestas coisa de conservadorsmo versus progressismo por gerações, há também uma grande mistura entre a função e a derivada, ou talvez até a segunda derivada... Nota 2: tenho também uma ainda maior desconfiança face ao conceito de "geração X" (tenho também um post nos rascunhos sobre isso), que em Portugal abrangeria tanto a geração "Prá Frente Portugal" como a "geração rasca", largamente opostas; eu suspeito que há uma diferença marcada entre as pessoas da minha idade ou mais velhas (a típica geração de 80), e as mais novas que eu (a "geração rasca", e também a do grunge e, em Portugal, do rap).
Ora, disse a Morsa ao Carpinteiro vamos ter muito que falar: de botas, e lacre, e veleiros, de reis, e couves da casa, de saber porque ferve o mar, ou se há porcos com asas.
Lewis Carroll
Alice do outro lado do espelho, cap. IV