27/09/13

A Gaiola Dourada ou o regresso da propaganda (I)



Não é de hoje nem de ontem, é de sempre.
Estou em crer que é algo de recorrente e repetitivo na história das migrações desta sociedade. Provavelmente nas migrações em geral… Na emigração, na vivência da condição de imigrante, os indivíduos descobrem-se, revelam-se, escondem-se do que descobrem ser ou não ser. A história da emigração portuguesa em França é um exemplo deste processo de construção ou desconstrução de uma identidade. Foi através da condição de imigrante que centenas de milhares de proletários pobres acederam à identidade de «Portugueses». Os mesmos que, durante séculos, tinham vivido nas margens miseráveis de uma sociedade rural pobre que os obrigara a procurar a sobrevivência para além das fronteiras de uma pátria que mais não era do que uma abstracção ou, no pior dos casos, uma justificação para uma morte em terras africanas. E foi assim que os imigrantes de Portugal se tornaram Portugueses, em terras de França e noutras. Para a maioria, o humano foi reduzido ao seu denominador mais pequeno, atrelado a esta «forma particularmente abjecta de mesquinhez colectiva à qual se dá o nome de nacionalismo» (Georges Bernanos). Para uma minoria, ao contrário, foi esta mesma condição de Estrangeiro que lhes revelou a dimensão cosmopolita do humano, a existência de uma identidade mais universal. Para muitos a emigração foi um empobrecimento do espírito, um fechar sobre si próprio, mas para outros representou um enriquecimento, a abertura sobre o Outro e sobre o Mundo, um ultrapassar do patriotismo tacanho. Uma minoria solidamente rebelde às identidades nacionalistas, da qual me orgulho de fazer parte.
Os tempos recentes deram-nos exemplos de atitudes radicalmente opostas face aos acontecimentos da história. Assim, em Maio 68, a linha de fractura na emigração portuguesa separou a maioria, imbuída do terror do comunismo inculcado pelo salazarismo e a Igreja, dos que, instantaneamente, reconheceram a sua revolta no movimento. Sobre os efeitos desconcertantes e contraditórios deste momento, há os inteligentes filmes de José Vieira, Le drôle de mai. Chroniques des années de boue, 2008 e Deserteurs et insoumis dans le mouvement de Mai 68, le printemps de l’exil, 2011. Uns anos mais tarde, no 25 de Abril e nos anos quentes que se seguiram, a mesma maioria comportou-se como vanguarda das forças reaccionárias, mobilizando-se em defesa da propriedade privada, vivendas e prédios de aldeias, vazios de gente e de vida durante 11 meses do ano… É assim que os que se tornaram Portugueses na emigração se mostram mais Portugueses do que os que estão fartos de o ser. Instituições diversas e variadas tiveram o seu papel na construção da identidade de «Português» para imigrantes. As da «velha senhora» antes de mais, a igreja católica e apostólica, proprietária eterna do espírito dos pobres camponeses das terras do demo. Outras - em aparência mais modernas - vieram pouco a pouco substituir-se aos militantes do Vaticano. Não sem menos jesuitismo, os partidos e vanguarda políticas do marxismo-leninismo lusitano, procuraram enquadrar o bom povo emigrado nas actividades folclóricas, ranchos, fados, associações desportivas e outras, consideradas como lugares naturais das massas populares. Os anos 1960 e 1970 constituíram o auge deste militantismo, que consumiu a energia de muita gente generosa e intrinsecamente revoltada em tarefas de animação de verbena. Os tempos passam e, não obstante a insistência de alguns originais, tais práticas passaram de moda. Os imigrantes ligam mais a sua identidade às máfias do futebol que aos ranchos folclóricos. Tudo se vai diluindo a ponto de alguns espíritos nostálgicos perguntarem: mas afinal o que é um imigrante português ? Pergunta que interessa também aos bancos que cheiram o bom negócio.
É assim que, não tanto por obra do espírito santo ou por imaginação criativa de uma meia dúzia de totós do meio cinematográfico, veio à luz o filme Gaiola dourada. Visto já por um milhão de pessoas na França e em breve por um outro milhão em Portugal… Para grande regozijo dos produtores envolvidos.
Comentários do estilo «é uma homenagem aos Portugueses de França» ou mesmo «tem piada mesmo se é cliché», não são aceites nesta repartição. Porque o filme não é mau, é pior do que isso! Encoberto pela mediocridade e superficialidade da história há um temível projecto de propaganda. Numa entrevista a uma das publicações com maior tiragem da imprensa francesa, o realizador Ruben Alves revela ingenuamente a ideologia que defende. «Para a geração dos meus pais, que chegaram na década de 1970, a abnegação no trabalho é uma forma de gratidão ao acolhimento da França.» (Télérama, 28 agosto 2013). Mas de que acolhimento está o Ruben Alves a falar, os bidonvilles dos anos 1960 e 1970, a exploração dura e violenta que continua hoje a atingir os milhares que continuam a chegar e a procurar trabalho, muitas vezes levada a cabo por gangues de compatriotas? E se há assim que agradecer à França pela sobrevivência da espécie, então qual a razão desta identificação com o país que os levou à fome? Mistérios da sétima arte! O discurso obsceno da abnegação face à exploração, do elogio da doença do trabalho, da atitude servil de gratidão perante quem explora, delimitam a imagem dos Portugueses na mente dos seus exploradores. E é precisamente esta imagem que é lembrada, promovida, apresentada como conforme à «natureza» do «verdadeiro português». Como o sugere aliás, com um paternalismo cínico, alguma imprensa francesa.
Há na Gaiola Dourada três mensagens. O banal cidadão francês fica confortado na ideia de que os Portugueses são realmente o que ele pensa que eles são, gente simpática e submissa, resignada. Aos imigrantes é lembrado que devem ser o que os outros pensam que eles são. Finalmente, transmite-se ao público português a ideia de que os imigrantes são apreciados nas terras de França porque são o que os seus patrões gostam que eles sejam. Mais um exemplo para que a Troika se convença da natureza pacífica do povo. Para quem não se reconheça nestas categorias, a violência dos «clichés» da Gaiola Dourada constitui um atentado contra a dignidade. Dos salazaristas Serões para Trabalhadores (para os amnésicos, os programas radiofónicos do regime que se destinavam a inculcar no bom povo português os valores cristãos e nacionalistas) passámos à neoliberal A Mala de Cartão, para chegarmos hoje ao pós-modernismo da Gaiola Dourada. Com um mesmo fio condutor: a promoção dos valores de submissão à exploração, ao respeito do lugar que é o dos pobres. Ruben Alves fez o filme de que se precisava, um triste filme de propaganda embrulhado num enredo que faz rir sem fazer pensar.
«Sede determinados a não mais servir, e sereis livres », a máxima de Etienne de la Boétie, é provavelmente incompreensível para o realizador e seus colaboradores. Inaceitável para os produtores da obra. Mas seria errado deduzir que todos os que se deixaram seduzir por este filme de propaganda são inconscientes da alienação em que vivem, insensíveis aos valores universais de fraternidade, ao desejo de emancipação social. As confrangedoras caricaturas que nos são impingidas na Gaiola Dourada dizem mais sobre quem as criou que sobre a realidade contraditória da colectividade proletária em questão.

Fico por aqui. Para mais e melhor em breve vos convidarei à leitura de mais reacções que circulam entre os rebeldes à portugalidade folclórica, entre os alérgicos à imagem do «bom e trabalhador povo português». A verdade é que, se a Gaiola Dourada fez rir muita gente há também quem tenha ficado zangado com a brincadeira de mau gosto.



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