Não é de hoje nem de ontem, é de sempre.
Estou em crer que é algo de recorrente e repetitivo
na história das migrações desta sociedade. Provavelmente nas migrações em geral…
Na emigração, na vivência da condição de imigrante, os indivíduos descobrem-se,
revelam-se, escondem-se do que descobrem ser ou não ser. A história da emigração
portuguesa em França é um exemplo deste processo de construção ou desconstrução
de uma identidade. Foi através da condição de imigrante que centenas de
milhares de proletários pobres acederam à identidade de «Portugueses». Os mesmos
que, durante séculos, tinham vivido nas margens miseráveis de uma sociedade rural
pobre que os obrigara a procurar a sobrevivência para além das fronteiras de
uma pátria que mais não era do que uma abstracção ou, no pior dos casos, uma
justificação para uma morte em terras africanas. E foi assim que os imigrantes
de Portugal se tornaram Portugueses, em terras de França e noutras. Para a maioria,
o humano foi reduzido ao seu denominador mais pequeno, atrelado a esta «forma
particularmente abjecta de mesquinhez colectiva à qual se dá o nome de
nacionalismo» (Georges Bernanos). Para uma minoria, ao contrário, foi esta
mesma condição de Estrangeiro que lhes revelou a dimensão cosmopolita do
humano, a existência de uma identidade mais universal. Para muitos a emigração
foi um empobrecimento do espírito, um fechar sobre si próprio, mas para outros
representou um enriquecimento, a abertura sobre o Outro e sobre o Mundo, um
ultrapassar do patriotismo tacanho. Uma minoria solidamente rebelde às
identidades nacionalistas, da qual me orgulho de fazer parte.
Os tempos recentes deram-nos exemplos de atitudes
radicalmente opostas face aos acontecimentos da história. Assim, em Maio 68, a linha de fractura na
emigração portuguesa separou a maioria, imbuída do terror do comunismo inculcado
pelo salazarismo e a Igreja, dos que, instantaneamente, reconheceram a sua
revolta no movimento. Sobre os efeitos desconcertantes e contraditórios deste
momento, há os inteligentes filmes de José Vieira, Le drôle de mai. Chroniques des années de boue, 2008 e Deserteurs et insoumis dans le mouvement de
Mai 68, le printemps de l’exil, 2011. Uns anos mais tarde, no 25 de Abril e
nos anos quentes que se seguiram, a mesma maioria comportou-se como vanguarda
das forças reaccionárias, mobilizando-se em defesa da propriedade privada, vivendas
e prédios de aldeias, vazios de gente e de vida durante 11 meses do ano… É
assim que os que se tornaram Portugueses na emigração se mostram mais
Portugueses do que os que estão fartos de o ser. Instituições diversas e variadas
tiveram o seu papel na construção da identidade de «Português» para imigrantes.
As da «velha senhora» antes de mais, a igreja católica e apostólica, proprietária
eterna do espírito dos pobres camponeses das terras do demo. Outras - em
aparência mais modernas - vieram pouco a pouco substituir-se aos militantes do
Vaticano. Não sem menos jesuitismo, os partidos e vanguarda políticas do marxismo-leninismo
lusitano, procuraram enquadrar o bom povo emigrado nas actividades folclóricas,
ranchos, fados, associações desportivas e outras, consideradas como lugares
naturais das massas populares. Os anos 1960 e 1970 constituíram o auge deste
militantismo, que consumiu a energia de muita gente generosa e intrinsecamente
revoltada em tarefas de animação de verbena. Os tempos passam e, não obstante a
insistência de alguns originais, tais práticas passaram de moda. Os imigrantes
ligam mais a sua identidade às máfias do futebol que aos ranchos folclóricos. Tudo
se vai diluindo a ponto de alguns espíritos nostálgicos perguntarem: mas afinal
o que é um imigrante português ? Pergunta que interessa também aos bancos que
cheiram o bom negócio.
É assim que, não tanto por obra do espírito santo
ou por imaginação criativa de uma meia dúzia de totós do meio cinematográfico, veio
à luz o filme Gaiola dourada. Visto já
por um milhão de pessoas na França e em breve por um outro milhão em Portugal…
Para grande regozijo dos produtores envolvidos.
Comentários do estilo «é uma homenagem aos
Portugueses de França» ou mesmo «tem piada mesmo se é cliché», não são aceites
nesta repartição. Porque o filme não é mau, é pior do que isso! Encoberto pela mediocridade
e superficialidade da história há um temível projecto de propaganda. Numa
entrevista a uma das publicações com maior tiragem da imprensa francesa, o
realizador Ruben Alves revela ingenuamente a ideologia que defende. «Para a
geração dos meus pais, que chegaram na década de 1970, a abnegação no
trabalho é uma forma de gratidão ao acolhimento da França.» (Télérama, 28 agosto 2013). Mas de que
acolhimento está o Ruben Alves a falar, os bidonvilles
dos anos 1960 e 1970, a
exploração dura e violenta que continua hoje a atingir os milhares que
continuam a chegar e a procurar trabalho, muitas vezes levada a cabo por gangues
de compatriotas? E se há assim que agradecer à França pela sobrevivência da
espécie, então qual a razão desta identificação com o país que os levou à fome?
Mistérios da sétima arte! O discurso obsceno da abnegação face à exploração, do
elogio da doença do trabalho, da atitude servil de gratidão perante quem
explora, delimitam a imagem dos Portugueses na mente dos seus exploradores. E é
precisamente esta imagem que é lembrada, promovida, apresentada como conforme à
«natureza» do «verdadeiro português». Como o sugere aliás, com um paternalismo
cínico, alguma imprensa francesa.
Há na Gaiola
Dourada três mensagens. O banal cidadão francês fica confortado na ideia de
que os Portugueses são realmente o que ele pensa que eles são, gente simpática
e submissa, resignada. Aos imigrantes é lembrado que devem ser o que os outros
pensam que eles são. Finalmente, transmite-se ao público português a ideia de que
os imigrantes são apreciados nas terras de França porque são o que os seus
patrões gostam que eles sejam. Mais um exemplo para que a Troika se convença da
natureza pacífica do povo. Para quem não se reconheça nestas categorias, a
violência dos «clichés» da Gaiola Dourada constitui
um atentado contra a dignidade. Dos salazaristas Serões para Trabalhadores (para os amnésicos, os programas radiofónicos
do regime que se destinavam a inculcar no bom povo português os valores
cristãos e nacionalistas) passámos à neoliberal A Mala de Cartão, para chegarmos hoje ao pós-modernismo da Gaiola Dourada. Com um mesmo fio
condutor: a promoção dos valores de submissão à exploração, ao respeito do lugar
que é o dos pobres. Ruben Alves fez o filme de que se precisava, um triste
filme de propaganda embrulhado num enredo que faz rir sem fazer pensar.
«Sede determinados a não mais servir, e sereis
livres », a máxima de Etienne de la Boétie, é provavelmente incompreensível para o
realizador e seus colaboradores. Inaceitável para os produtores da obra. Mas seria
errado deduzir que todos os que se deixaram seduzir por este filme de
propaganda são inconscientes da alienação em que vivem, insensíveis aos valores
universais de fraternidade, ao desejo de emancipação social. As confrangedoras
caricaturas que nos são impingidas na Gaiola
Dourada dizem mais sobre quem as criou que sobre a realidade contraditória
da colectividade proletária em questão.
Fico por aqui. Para mais e melhor em breve vos
convidarei à leitura de mais reacções que circulam entre os rebeldes à
portugalidade folclórica, entre os alérgicos à imagem do «bom e trabalhador
povo português». A verdade é que, se a Gaiola
Dourada fez rir muita gente há também quem tenha ficado zangado com a
brincadeira de mau gosto.
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