Mais do que por livros, teorias ou abstracções, parte importante do meu crescimento político fez-se por afectos. Por experiências sensíveis. Parece estranho dizer isto assim mas não tem nada de esotérico e até se explica, provavelmente, por factores de classe social que agora não interessa explorar. Cresci rodeado de pessoas sem qualquer tipo de actividade política (de acordo com os sentidos mais convencionais de “actividade política”): não eram militantes de nada, não embandeiravam causa nenhuma, não reflectiam abertamente sobre esse domínio a que usualmente chamamos Política (com “P” maiúsculo) e que magicamente se separou e autonomizou da realidade social. Eram vidas feitas de quotidiano, preenchidas pelas rotinas e coisas banais do dia-a-dia, como serão, talvez, as vidas da maioria das pessoas. E, no entanto, procuravam viver intensamente esse dia-a-dia de acordo com o que consideravam estar correcto (algo muito mais raro do que parece à primeira vista). Mas, para saltar os pormenores, o que interessa sublinhar é que o mundo que aprendi com essas pessoas que me deram a mão nos meus primeiros passos foi diferente do(s) mundo(s) que encontrei quando comecei a caminhar sozinho. E o embate foi forte, senti-o intensamente, com choque. O título de uma música de uma banda rock sueca traduz a experiência: "capitalism stole my virginity". Foi aí que começaram a chegar os livros e as teorias. Procurei-os, e continuo a procurá-los, para me darem respostas ao que não percebo. Foi com eles que os afectos começaram a encontrar-se com uma consciência política.
Talvez por tudo isto, já na universidade, os autores que mais me fascinaram foram aqueles que vieram cá abaixo, procurar as pessoas, e deixaram os sentimentos entrar nas suas obras e militância política. De E. P. Thompson a James C. Scott, e apesar de tudo o que deles me possa separar, é isso que me atrai continuamente no que escreveram. Parafraseando Thompson, agradam-me as obras que tentam resgatar essas pessoas anónimas não só da condescendência da posterioridade como, acrescento eu, também da do presente. Marshall Berman, recém-falecido, não sendo para mim uma referência (até porque dos seus livros só li All That is Solid Melts into Air), também o fez. Não partilho do seu optimismo, nem me revejo totalmente nesse seu livro (apesar do gosto com que o li), mas agrada-me a sua “politics of feeling”. Uma política de contacto sensível – visceral – com o mundo. Algo próximo (para dar dois exemplos de figuras que também partiram recentemente) a Urbano Tavares Rodrigues quando afirmava ser “comunista por amor”, ou a Manuel António Pina quando alertava para a “enorme e perigosa carência de infância” na nossa sociedade ou, ainda, quando invocava a poesia contra a economia e contra “tempos de indigência e (…) usura” como estes.
Quem sabe tudo isto não seja mais do que um subterfúgio frágil para fugir à solidão da abstracção que Berman via em Perry Anderson, na sua forma de ver e teorizar sobre o mundo, como lhe disse em resposta à recensão crítica que este escreveu a All That Is Solid Melts Into Air. Mas nem por isso deixo de achar importante ler estes autores.
Neste texto, David Marcus fala de Marshall Berman, do seu marxismo e da sua “politics of feeling” e recorda a resposta de Berman a Perry Anderson.
No Guardian, Owen Hatherley escreveu sobre como Berman “reclamou a modernidade para os marxistas”:
Outros textos de homenagem podem ser encontrados aqui, no site da Dissent Magazine, revista de que Berman era um dos editores, ou aqui, no site da Verso Books (onde também há um link para a recensão de Berman ao Manifesto Comunista).
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