Ja diversas vezes constatei, inclusivamente aqui
no Vias de Facto, algum embaraço perante a acusação barroca de “moralismo”, que
aparece frequentemente nos debates entre pessoas de esquerda. Quanto mais penso
no assunto, mais me parece que há aqui uma questão mal resolvida, mas nem por
isso menos importante. Ora vejamos.
Numa primeira análise, a acusação de “moralismo”
tende a confundir-se com a contestação de regras morais (e mais precisamente de
normas restritivas da liberdade individual) impostas sem deliberação e de forma
autoritária. Isso talvez corresponda a uma realidade histórica, no tempo em que
a moral dos dominantes era imposta pela força em nome de Deus, mas hoje em dia,
a acusação já não tem grande razão de ser. Com efeito, se exceptuármos o João César
das Trevas, ninguém contesta que a sociedade deva reger-se por princípios
“liberais”, o que implica que as normas restritivas das liberdades individuais
(que devem ser adoptadas de forma democrática) só fazem sentido quando são necessárias
para permitir o exercício de outras liberdades. Julgo também que ninguém
contesta que sejam precisas algumas regras restritivas das liberdades
individuais. Reparem que tais restrições assentam necessariamente na moral, tal
como a necessidade de as manter excepcionais. Penso que tudo isto é relativamente
pacífico e que não merece grandes desenvolvimentos. Imaginem se uma pessoa acusada de sequestrar
outra se insurgisse dizendo : “esta sociedade é abusivamente moralista, com que
direito vêm restringir a minha liberdade de sequestrar pessoas ?!?”. Absurdo.
Ora bem, na grande maioria dos casos, quando uma
pessoa acusa outra de ser “moralista”, esta última está apenas a defender a
legitimidade de restringir algumas liberdades, não porque pensa que isso seja um obscuro
comando de Deus, mas porque entende que é racional proceder assim em nome do
interesse colectivo, que inclui a preocupação de proteger outras liberdades
colectivas ou individuais. Os exemplos são infinitos. Nestes casos, o argumento
do “moralismo” equivale, em termos lógicos, a dizer “mas olha que tu estás a dizer o contrário daquilo que eu penso” o
que, convenhamos, tem um poder persuasivo relativamente limitado...
No entanto, a acusação de “moralismo” pode também
ser entendida de uma outra maneira, mais subtil, que se enraíza em preconceitos
cientificistas bastante comuns entre as pessoas de esquerda. Nesta accepção,
acusa-se de “moralismo” uma pessoa que apela para valores que se reputam
obscuros, imotivados ou insuficientemente motivados porque não podem ser
aferidos pelo método científico, tido como o único capaz de estabelecer
certezas suficientemente sólidas para orientar as nossas decisões. Neste sentido, o argumento tem uma inegável
força retórica : “Vais seguir o
feiticeiro ou o engenheiro ? Vais
acreditar nas patranhas dos padres sobre o respeito da natureza criada por Deus,
ou analisar friamente os dados científicos de que dispomos sobre a elevada
probabilidade de conseguirmos rapidamente colonizar o planeta Saturno onde
vamos produzir num ano géneros alimentares em quantidade suficiente para
satisfazer Xn gerações futuras ?” (exemplo completamente inventado...).
Este tipo de argumentação, muito frequente em
pessoas que se reclamam do marxismo, doutrina nascida no auge do positivismo
cientificista, parece-me duplamente perigoso.
Em primeiro lugar, assenta numa crença altamente
contestável, e aliás desprovida de justificação científica, na capacidade
ilimitada da ciência de nos proporcionar um conhecimento exacto e exaustivo da
realidade, não apenas da realidade objectiva, mas também das considerações a
ter em conta nas nossas decisões morais e políticas. Julgo que é relativamente
pacífico, hoje em dia, que a ciência não tem pretensões tão elevadas e que,
muito pelo contrário, ela se reclama de um rigor que nasce em grande parte da
consciência que tem das suas próprias limitações.
Em segundo lugar, o argumento esconde também outra
coisa, bastante mais preocupante, que é uma recusa frontal de debater acerca das
finalidades e dos valores. Com efeito, de acordo com esta concepção, das duas
uma : ou falamos de realidades objectivas, e então exigimos provas
testadas com rigor científico (que não se discutem), ou falamos de realidades
impermeáveis à ciência e deixadas ao critério puramente subjectivo das emoções
(que também não se discutem). Só que esta alternativa assenta numa perigosa
falácia, que consiste em negar que possa haver um debate racional e frutífero sobre
valores ou sobre finalidades. E esta falácia parece-me ser, paradoxalmente, a
semente do rigorismo em que se enraízam a intolerância e o autoritarismo...
Escrevi aqui em cima que esta segunda forma, mais
subtil, de desqualificar o “moralismo” era frequente em pessoas que se reclamam
do marxismo. Queria no entanto deixar claro que ela não me parece poder apoiar-se
no pensamento de Marx. Muito pelo contrário, julgo que o pensamento de Marx pode
descrever-se como uma tentativa profundamente libertária de alcançar uma moralização do capitalismo.
Mas posso estar enganado...
PS : E com esta provocação me estreio no
Vias de Facto, blogue que leio há muito tempo. Abraços a todos, camaradas, e indulgência
para com este vosso criado !
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