04/09/13

"Fragilidade semântica" e deterioração política

Rita Dantas, quebrando uma lança, cuja têmpera argumentativa merecia melhor causa, em defesa da denúncia bloquista do "piropo", parece reconhecer a inadequação da palavra, quando fala da "fragilidade semântica"que "ameaçou enterrar o debate".

Mas o problema é que a "fragilidade semântica" ou a deterioração das palavras é também uma fragilidade política e uma deterioração política ( Orwell sabia alguma coisa do assunto). A palavra justa e a atenção à palavra, bem como, já agora, uma certa "paciência do conceito", são uma condição da democracia e uma via necessária, ainda que não suficiente, da democratização. Declarar infame a grosseria sexista não é a mesma coisa que declarar infame o galanteio, a solicitação verbal, o jogo da sedução, a iniciativa que visa o consentimento erótico ou amoroso de outrem. Ora, acontece que denunciar o "piropo" como agressão e violência equivale no mínimo, porque designa mal a coisa e confunde as ideias, a deitar fora o bebé com a água do banho, a adensar a penumbra mental em que todas as distinções se tornam pardas, a abrir a porta ou — vá lá… — aplanar o caminho, à censura e às mais abusivas políticas de policiamento de costumes. É que, como reza o título do blogue da própria Rita Dantas, Boas Intenções [, ele há] Um Inferno Cheio Delas

5 comentários:

Rita Maria disse...

Eu não só reconheço a fragilidade semântica como sei que as palavras são importantes, significativas e reveladoras.

Mas face a um debate público "mal convocado" por assim dizer sobre um problema social eu posso fazer três coisas:

1. Ignorar, porque o debate não foi posto nos meus termos.
2. Tentar participar nos termos que julgo correctos, esclarecendo e partilhando a minha perspectiva.
3. Matar o debate porque usaram a palavra errada e portanto não há sequer discussão possível.

Eu acho que quem reconhece que é grave que miúdas de doze anos sejam tratadas na rua por "boquinha de broche" e "grande par de mamas", que aprendam a encolher-se e a ter medo de andar na rua, que percebam que o seu corpo é um objecto considerado do domínio público, só pode optar pela segunda.

Quem acha que a situação tal como está não é grave, pode escolher uma das outras duas.

joão viegas disse...

Ola,

Custa-me entrar no debate imbecil e histérico que se gerou acerca deste assunto, mas acho que este post diz uma coisa que, parecendo simples, é sistematicamente olvidada nas nossas sociedades pretensamente clericais.

"A palavra justa e a atenção à palavra, bem como, já agora, uma certa "paciência do conceito", são uma condição da democracia e uma via necessária, ainda que não suficiente, da democratização."

Se meditassemos e acatassemos esta consideração de bom senso, 80 % dos problemas de que debatemos seriam facilmente solucionados.

Não ha que ter medo, que os restantes 20 % dão conversa para varios séculos...

Abraço

Miguel Serras Pereira disse...

Agradeço ao João o seu comentário reconfortante, com o costumado abraço amigo.
À Rita Maria tenho a dizer o seguinte: primeiro, nenhum dos seus argumentos refuta seja o que for do meu pequeno post. Em segundo lugar, peço-lhe que considere a eventualidade de um debate convocado para discutir "O Papel da Raça na Luta de Classes", perguntando-lhe depois se a única intervenção útil - a haver alguma - não será a de começar por denunciar os termos em que a questão é posta, sobretudo no caso de podermos pensar que as intenções dos promotores da iniciativa são combater as discriminações.

msp

Rita Maria disse...

Sim, claro - reconheço mesmo e sem dificuldade que as palavras são importantes.

Mas depois disso, se achasse o tema do debate importante, e muito especialmente se fosse uma coisa a que eu reconhecesse importância mas de que se falasse pouco, debatia-o, não dava necessariamente a ocasião por perdida.

Ana Cristina Leonardo disse...

Só agora vi isto. Mas é interessante, ou se calhar devia dizer significativo, que a palavra de ordem escolhida fosse "engole o teu piropo". Porque não: "engole a tua alarvidade, ó grunho"? Piropo é quando um desconhecido de repente me oferece flores. Sem eu lhe pedir. Mas quer-me parecer que há muita gente que também acha isso um atentado à emancipação feminina. A semântica, de facto, é tramada.