Esta questão levantada n'A Douta Ignorância levou-me a outra questão - se o governo deve ser exercido por pessoas "qualificadas para tal".
E a minha resposta é... não! Porquê?
Vamos imaginar uma sociedade em que não há conflitos entre os desejos dos individuos - numa sociedade desse género não haveria qualquer necessidade de governo*, já que tudo poderia funcionar por acordos amigáveis, logo a questão "quem deve governar" não faria sentido - se fosse assim, ninguém deveria governar (algumas pessoas poderiam escolher peritos hiper-qualificados para os guiar, mas sem qualquer poder impositivo).
Agora vamos imaginar uma sociedade em que os desejos dos individuos são conflituais, seja por razões objectivas (p.ex., conflitos entre ricos e pobres), seja por razões subjectivas (p.ex., conflitos entre os que preferem uma praia com rochas naturais e os que preferem que seja implantado um enorme areal). Nessa sociedade talvez* fosse necessário um governo/estado, mas, exactamente porque há desejos conflituais, não há nenhuma solução que se pode dizer que seja a correcta (afinal, qual é a razão para optarmos pelos desejos de uns em detrimento dos de outros) - parafraseando o PR, "mesmo duas pessoas inteligentes e com a mesma informação poderão discordar". E, se não há "a" melhor decisão, mas sim interesses e/ou valores em conflito, não é por a decisão ser tomada por um "perito" que será melhor que se for tomada por um plenário ou referendo (claro, poderá-se argumentar que também não será pior...).
Resumindo:
- se não haver valores ou interesses em conflito na tomada de uma decisão, não é necessária uma autoridade com poder coercivo* para impor a decisão
- se haver valores ou interesses em conflito nessa decisão, isso que dizer que não há uma solução "técnica" para o problema (a decisão acabará por ser mais uma escolha subjectiva e/ou ideológica), logo não há grande justificação para ser tomada por "pessoas qualificadas"
*note-se que em nenhum momento eu digo que se houverem interesses ou valores em conflito é necessário um poder coercivo e que as coisas não se poderão resolver pela tal cooperação amigável; apenas digo que, se não houver esse conflito, é que de certeza não é necessário existir "poder".
30/03/10
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12 comentários:
Para mim é evidente que o maior problema das nossas sociedades é o serem governadas por pessoas que não têm competências, nem qualificações para exercer o poder que detêm mercê de um sistema todo ele preparado e criado à imagem e semelhança dos próprios interessados em deter esse poder, como sejam os políticos e os partidos a que estão ligados.
Todos os outros problemas derivam daí.
Miguel Madeira: Oh, meu caro,o Carnaval já passou há muito. O seu post é uma calamidade. V. não se reclamava do Anarquismo...quase científico? Miguel Madeira, fiquei de cair da cadeira. Acredite. A falar beatificamente do Estado, do Governo e de Cavaco Silva...Não lembra ao demónio. Porquê? Porque está a prestar vassalagem a todo o aparelho de Dominação do Capitalismo Monopolista em crise aguda; mas com os dentes repressivos cada vez mais afiados! Niet
É jurista?
Niet, relembro a minha nota de rodapé - note-se que em nenhum momento eu digo que se houverem interesses ou valores em conflito é necessário um poder coercivo e que as coisas não se poderão resolver pela tal cooperação amigável; apenas digo que, se não houver esse conflito, é que de certeza não é necessário existir "poder".
"É jurista?"
Não. Porque...?
O poder deve ser exercido por pessoas que, mesmo sem conhecimentos técnicos para enquadrar analiticamente as suas decisões, tenham "senso comum", ou "bom senso".
Há dias deixei um comentário no blogue da Joana em que dizia que o bom Ministro das Finanças devia ser mesmo uma dona de casa.
Os governantes podem sempre rodear-se de especialistas que os poderão assessorar relativamente aos aspectos técnicos que devem ser integrados numa boa decisão política.
Não é fácil perceber quem é dotado de "senso comum", nem definir indicadores precisos e quantitativos para o determinar?
Não.
Mas a democracia, ou o "aparelho de Dominação do Capitalismo Monopolista", tem a grande vantagem de permitir aos cidadãos a substituição dos seus representantes no caso de considerarem que eles afinal não estiveram à altura das suas responsabilidades.
Ilustrando, a acreditar nos "westerns", e é a minha referência porque não sou um estudioso do assunto, os símbolos maiores da autoridade (do estado), os Juízes e os Xerifes, eram frequentemente desempenhados, não por juristas ou militares de carreira, mas por cidadãos eleitos entre os seus pares...
Miguel Madeira: Para quê embrulhar as coisas desse modo? Até à sociedade sem classes, o processo histórico pode trazer muitas surprezas...E justamente, há sempre conflitos de interesses e divisões na partilha do Poder proletário , por isso, a via democrática e plural de delegação e controlo caberão aos Conselhos Operários, eleitos e revocados instantâneamente desde que surjam conflitos de classe. Ao contrário do que a cartilha e a experiência histórica das Revoluções marxistas e leninistas o demonstraram pela " cristalização " repressiva, burocrática e policial dinamizada pela vanguarda política que se apoderou da máquina do Estado. Niet
Errata. Não vá o diabete jesuítico-castrador tecê-las: é- caberá aos Conselhos. Niet
Caro Manuel,
onde foi que você descobriu que a democracia é o aparelho de dominação do capitalismo monopolista?
Justamente, o que a democracia exclui é o monopólio do poder, a sua profissionalização, a sua captação por uma camada ou grupo particular. A democracia implica a participação igualitária e regular dos cidadãos nas decisões que afectam as condições e o ordenamento da sua cidade - e, portanto, como você viu bem, a desprofissionalização da política.
Por outro lado, qualquer regime de funcionamento da economia é construído a partir de arranjos institucionais e legais que estabelecem a sua forma de governo. Toda a economia é economia política - como lhe chamavam os clássicos. Aquilo a que chamamos o poder económico (poder de direcção dos aparelhos económicos e de decisão das regras de distribuição/circulação dos bens) é uma forma de poder político que não se assume como tal e se apresenta como beneficiando de uma espécie de objectividade natural destinada a excluí-lo da deliberação democrática dos cidadãos. Por isso não há democracia sem democratização do poder (político) de direcção e disposição da actividade económica e sem democratização do mercado de acordo com um princípio equivalente ao de um voto por cidadão que deve vigorar na esfera política restrita. Não há democracia sem republicanização da economia, pois suponho que você não contestará a relevância pública do modo de funcionamento da esfera económica.
Cordiais saudações democráticas e, se quiser, também anti-monopolistas
msp
Boa noite, Miguel,
Não, e sim!
Não, porque de facto, quando escrevi "a democracia, ou o aparelho de Dominação do Capitalismo Monopolista", não foi por ver na democracia o aparelho de dominação do capitalismo monopolista, coisa que nem sequer existe, mas sim para dizer uma coisa apelativa ao "anónimo", que captasse a sua atenção para ler o que escrevi.
Debalde, porque ele parece esperar (sentado, suponho) a chegada da "sociedade sem classes" e não estar nada interessado no que eu escrevo.
Sim, porque a democracia é de facto o sistema eleito pelo capitalismo, a que eu prefiro chamar de economia de mercado, para escolher, entre os cidadãos, os que governam, e é um dos alicerces do seu sucesso.
Porque se baseia, no plano da política, no mesmo princípio que a economia de mercado, no plano económico: o princípio de que a livre interacção de indivíduos informados e com liberdade de escolha, mesmo que prosseguindo os seus interesses individuais, tendo como limite apenas as escolhas que limitam a liberdade dos outros, conduz a resultados melhores do que o controlo da actividade por líderes, por mais esclarecidos e bem intencionados que sejam.
O monopólio é uma preversão em qualquer dos planos, porque impede a escolha em liberdade, quer seja da marca da roupa que usa, quer seja do seu representante num orgão do governo.
O capitalismo monopolista não existe, a não ser no imaginário de uma esquerda que parou no tempo há muitas décadas atrás.
As suas preocupações quanto à possibilidade de captura do poder político pelo poder económico têm algum sentido, mas a democracia portuguesa ainda não lançou recurso a todos os intrumentos que tem à sua disposição para a procurar neutralizar.
Nomeadamente, a eleição de deputados em círculos uninominais que devolve aos eleitores o poder que lhes foi capturado pelos partidos na construção da nossa democracia.
Saudações liberais, cordiais como sempre...
Sou o (ex-)anónimo que perguntou se era jurista.
Primeiro, acho a sua argumentação muito bem feita. Uma crítica a uma tecnocracia que sempre teve pouca fé na democracia e que sempre cuidou de olhar por si em primeiro lugar e dos poderosos de quem são os cães de guarda.
E, aliás, esta ideia das "pessoas qualificadas" é altamente anti-democrática. Porque, como diz, vivemos numa sociedade em que os conflitos existem. E se os ignorarmos, invocando o pretexto de que há pessoas que estão acima deles, estamos a impedir que os conflitos que estão latentes e não resolvidos, um dia - mais cedo ou mais tarde -, por terem sido ignorados, ressurjam nas formas mais violentas. E é isso que a democracia é (pelo menos): a gestão não violenta dos conflitos.
E fiz-lhe esta pergunta mais por ignorância do que outra coisa. Ando a ler um livro de introdução ao Direito onde aparecem termos por si utilizados e apeteceu-me, por curiosidade, fazer-lhe a pergunta.
E já agora, sobre as "pessoas qualficadas", um tetxo sobre o assunto num blogue do Monde Diplomatique, por Frédéric Lordon: Bonus et primes : le (résistible) chantage des « compétents ».
Link: http://blog.mondediplo.net/2009-03-26-Bonus-et-primes-le-resistible-chantage-des
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