15/04/10

Laicidade, sim; "a minha política é o trabalho", não

Embora compreenda que choque muita gente a tolerância de ponto decretada pelas autoridades, constitucionalmente vinculadas à laicidade, por ocasião da visita de um dirigente religioso, que é também o monarca absoluto da Santa Sé, e se aprovo que se conteste a legitimidade dessa decisão, penso que outras respostas em defesa da laicidade, mais interessantes e prometedoras, são possíveis.
Acresce que considero politicamente desastroso, e bastante pior que não protestar contra a decisão em causa, argumentar como alguns fazem que, dada a crise que atravessamos, não podemos perder tempo de trabalho, e que a tolerância de ponto é injustificável em termos de não sei que racionalidade económica.
Dizer, como o faz o grupo que desenvolve uma campanha sob este lema no Facebook: "Eu trabalho e não quero tolerância de ponto no dia 13 de maio", porque "a visita papal não nos vai tirar da crise, e assim até nos afunda mais nela, com os seus custos directos e indirectos", é, com efeito, aceitar por boas as razões, os critérios e a legitimidade da direcção (política) da mesma ordem ou regime económico que quotidiana e regularmente nos priva da liberdade e igualdade efectivas do exercício de uma cidadania ou autonomia efectivamente democrática.
Assim, o mínimo que poderíamos sugerir aqui seria que se deixasse cair o "Eu trabalho" da palavra de ordem - que evoca, de resto, a divisa reaccionária de todos os fura-greves de sempre: "A minha política é  o trabalho" -, fazendo-a dizer apenas: "Não quero tolerância de ponto no dia 13 de Maio". Ou qualquer coisa como: "Tolerância de ponto para ir a Fátima com o Papa? Não, obrigado"; "tolerância de ponto para a campanha papal do Cavaco? Não, obrigado"; "tolerância de ponto para aclamar o chefe da cruzada da Igreja contra as liberdades democráticas? Não, obrigado"; etc., etc.
Outras alternativas de luta seriam, no entanto, possíveis, puxando um pouco pela imaginação. Por exemplo, fazer uma campanha no sentido de transformar a tolerância de ponto prevista para o dia 13 de Maio num encontro-convívio-jornada de onde saísse a reivindicação de transformar essa data num feriado anual celebrando a "liberdade de consciência" e/ou a "cidadania laica", que, de resto, a Constituição em vigor consagra. Do mesmo modo, poderíamos pensar em palavras de ordem que, postas a circular desde já,  equivalessem, com mais inspiração do que aquela de que de momento disponho, a "Festa da Liberdade de Consciência, sim; Tolerância de Ponto Confessional, não"; "Feriado da Cidadania Laica, sim; Missas de Estado, não" - e assim por diante.

Para concluir, creio que,  ousando não sacrificar à lógica da economia política dominante, que é sempre a da anti-democracia,  e sempre anti-republicana, a campanha agora lançada, com as melhores intenções no Facebook, não só poderia mobilizar muitos dos que, como é o meu caso, não podem, por razões de princípio, aderir à formulação que lhe serve de plataforma, como seria também, no plano táctico, bastante mais eficaz.  A reivindicação de um feriado ou outras ideias de inspiração semelhante poderiam e deveriam dar aos que pretendemos combater a ofensiva reaccionária em preparação que a visita de Bento XVI configura esse humor de festa que convém a um testemunho da vontade de liberdade que nos anima e é a razão de ser deste combate.

12 comentários:

NG disse...

"os critérios e a legitimidade da direcção (política) da mesma ordem ou regime económico que quotidiana e regularmente nos priva da liberdade e igualdade efectivas do exercício de uma cidadania ou autonomia efectivamente democrática."

O que é que isto quer dizer?

Ricardo Alves disse...

Caro Miguel,
fui eu quem iniciou esse grupo, e revejo-me, quase, na crítica que aqui é feita(!).

O facto é que criei esse grupo num momento em que estava irritado com a existência de um grupo chamado «Trabalho para o Estado e não quero tolerância de ponto no dia 13 de Maio!», e que me pareceu uma boa ideia, mas mal explorada porque restrita a funcionários do Estado.

Admito que se tivesse pensado mais algum tempo, teria optado por «Não à tolerância de ponto no dia 13 de maio», ou uma das
alternativas mais pensadas que sugeres. Porque me apercebi rapidamente de que o grupo que criei ainda é restrito demais.

Mas, como diz a Joana, não se deve levar demasiadamente a sério o que se passa no Facebook.

Saudações republicanas,

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Nuno Gaspar,
o que quis dizer foi que opor à tolerância de ponto em honra do papa as necessidades ou exigências de um regime económico oligárquico e oligarquicamente dirigido como o que nos governa não emenda o soneto - ou seja, não é justificável em termos democráticos.
Cordialmente

msp

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Ricardo,
admiro a simplicidade e a coragem com que reformulas a tua posição. Que, evidentemente, subscrevo.
Devo acrescentar que, à partida, não pus em causa as intenções que tinham inspirado a formação do grupo, embora ignorasse por completo que tinha sido iniciativa tua. Mas, vendo que de algum modo o apoiavas no Esquerda Republicana que é um dos meus breviários em matéria de blogues, supus que seria gente deste lado da barricada que por ali andava, e escrevi o que escrevi neste post, e que mantenho, como um aviso à navegação de camarada.
Pela laicidade democrática e pela republicanização do governo da economia!
Forte abraço

miguel

NG disse...

Caro Miguel,

Eu entendi que o incomoda qualquer sinal de manifestação pública que adicione solenidade à visita do Papa. Mas continuo sem perceber isto:

"exigências de um regime económico oligárquico e oligarquicamente dirigido como o que nos governa "

saudações abrantinas

NG

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Nuno Gaspar,
refiro-me ao facto de o poder económico, de direcção da economia, etc. ser uma forma de poder político que não se assume como tal e que é, ao mesmo tempo, um regime contrário aos princípios do autogoverno igualitário e responsável que caracteriza a democracia (participação nas deliberações, definições de objectivos, decisões, etc.).
A seguir, acrescento que opor as exigências desta forma de economia como argumento à tolerância de ponto por ocasião da visita de Bento XVI a Portugal não faz sentido do ponto de vista de quem, como eu, reivindica a laicidade do poder político, de resto consagrada na Constituição.
Só queria esclarecer que não penso que deva ser restringida a liberdade religiosa dos católicos. O que me parece um abuso intolerável é a promoção ou propaganda oficial de um credo religioso por um poder político vinculado à laicidade e aos princípios de igualdade de direitos dos cidadãos em matéria de liberdade de consciência.

Saudações saudosas das conversas sobre a democracia, a filosofia e a cidadania dos idos encontros de Abrantes nos últimos anos da última década do século passado

msp

NG disse...

Caro Miguel,
Obrigado pela resposta (e pela boa lembrança).

Não partilho a ideia de que a iniciativa empresarial seja contrária aos princípios que caracterizam a democracia. Pelo contrário, acho que a falta de carinho e desconfiança que se traduz em excesso de burocracia e regulamentação talvez sejam do que mais contribui para a excessiva concentração de poder económico.
Outra ajuda também pode ser esta anestesia cívica promovida por muito boa gente que agarra toda e qualquer oportunidade para fazer um foguetório de enxovalho e humilhação públicos da Igreja Católica e, consequentemente, de todos os que, melhor ou pior, nela se revêem. Onde se reclama laicidade e igualdade de direitos só consigo ver catolicofobia militante.

Saudações de muita discordância mas ainda maior consideração.

NG

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Nuno Gaspar,
o problema com a Igreja Católica é que esta se sente perseguida por qualquer proposta ou iniciativa que conteste o lugar à parte, privilegiado, que ainda ocupa, ou ponha em causa as suas ambições de direcção doutrinária da sociedade, que desejaria ver protegidas pelo poder político.
Assim, perante as vozes que contestam - e nem todas dizem disparates ou disparam ao acaso - a participação/promoção das autoridades civis nas suas celebrações religiosas, em termos que configuram um tratamento oficial privilegiado da confissão romana, a hierarquia grita que está a ser perseguida ou que as ideias que defende estão a ser alvo de intolerância. O que é tanto mais bizarro quanto a Igreja de Roma gozou durante muito tempo do papel e do exercício de direitos garantidos pelo poder secular de controle e censura sobre as opiniões e a expressão de crentes e não crentes, e ainda hoje defende que os fundamentos da lei e da ordem política que a sua doutrina proclama não devem estar submetidos ao livre-exame e vontade democráticos dos cidadãos. Ou seja que aquilo a que chama a democracia - e que é na realidade um ordenamento que limita severamente esta última - só é legítima se respeitar a , e se subordinar à, "lei natural", nos termos em que a Igreja a define. Ver, por ex., a posição do Papa a este respeito neste texto "BENTO XVI APRESENTA LEI NATURAL COMO FUNDAMENTO DA DEMOCRACIA através do link:: http://www.zenit.org/article-16342?l=portuguese

(continua - cf. comentário seguinte)

Miguel Serras Pereira disse...

Quanto à economia e ao que entendo pela sua democratização, permita-me que o remeta para o que escrevi no nº15 da revista Trajectos (Outono 2009, Lisboa, Fim de Século):

“Há cerca de dez anos, tive ocasião de observar, a propósito da proposta de “rendimento de cidadania” ou “alocação universal”de Jean-Marc Ferry, uma desproporção enorme entre o longo alcance dos seus pressupostos em matéria económica e a timidez da solução a que ele chegava. Dizia eu que quando se sabe, como ele sabia, “que não existe de facto qualquer chave económica de repartição do rendimento global” e que “ninguém pode dizer como uma hierarquia dada dos rendimentos tem fundamentos objectivos na economia”, ou “porque é que, nessa hierarquia, o rendimento primário de certa categoria se relaciona com outros rendimentos segundo certo coeficiente multiplicador” – então, querer instituir democraticamente um “rendimento de cidadania, de resto tendo por objectivo promover a “participação”, só poderia fazer-se pondo em causa a divisão do trabalho político, sem esquecer a divisão política do trabalho, chamando os cidadãos a deliberarem e a decidirem responsável e regularmente nas matérias da orientação e da gestão, do sentido e das razões, do conjunto desse aparelho de poder político que é a economia, e a superarem assim a dissociação entre a acção política e a actividade económica.
(…)
[Não se trata apenas de] propor um papel acrescido do Estado (sem contestar as suas pretensões de representação do “público” frente ao “privado”) e um novo equilíbrio entre Estado e mercado na organização da vida económica.
(…)
eis, por fim, algumas condições do combate pela repolitização democrática da economia (política). Essa repolitização implicaria, entre outras coisas: uma democratização cooperativa das empresas e locais de trabalho, que concedesse à liberdade e responsabilidade dos seus colectivos a tarefa de conjugar e gerir as exigências estratégicas e instrumentais da produção; uma democratização do mercado que o tornasse meio e expressão de uma verdadeira soberania dos consumidores, o que significaria uma democratização-igualização dos rendimentos, sendo estes determinados, como Castoriadis sempre defendeu, pela transposição, com as adaptações e correcções necessárias, do princípio igualitário que atribui um mesmo valor e importância ao voto de todos cidadãos; a articulação desta democratização, ao nível do conjunto, com a publicização democrática do exercício do poder político, nos termos até aqui indicados.

(continua no próximo comentário)

Miguel Serras Pereira disse...

Cont. do coment. anterior

“Se não é possível antecipar concreta e precisamente as medidas e passos resultantes de um tal movimento de democratização, pois que este só poderá resultar da acção, capacidade inventiva e imaginação em acto dos seus protagonistas – quer dizer do movimento de conquista e consolidação de uma cidadania activa e governante por parte da grande maioria da população -, é fácil, demasiado fácil, antecipar as objecções que a este respeito serão levantadas pelos porta-vozes da ordem estabelecida. Estes dirão que o propósito de repolitizar democraticamente a actividade económica equivale a ignorar as leis e a destruir as bases da própria economia. E argumentarão decerto que confiar ao conjunto dos cidadãos o poder de decidir quanto ao regime do trabalho e da produção e quanto à repartição dos rendimentos seria despoletar, entre outras coisas, uma tendência no sentido da igualização que causaria a destruição das motivações e dos incentivos que impelem os indivíduos ao trabalho, à inovação, à manifestação do espírito de iniciativa, e assim por diante. No entanto, não se vê porque é que as pessoas não poderiam descobrir outros incentivos ao trabalho, à inovação, à investigação, à formação, etc., na ausência da escala dos rendimentos e do poder de comando existente. A eliminação deste último dispositivo de “motivação económica” poderia antes equivaler a libertar a “afirmação de si” de uma conjugação forçada e redutora que a empobrece e uniformiza. A única forma positiva de nos distinguirmos dos outros, comportando sem dúvida elementos de emulação, será fazermos deles ou subordinados ganharmos mais dinheiro do que eles? A “vocação” que leva um indivíduo a preferir a medicina à actividade agrícola desapareceria se se acabasse com as diferenças de remuneração entre ambas? Em suma, a ruptura deliberada com a presente hierarquia dos rendimentos e dos estatutos de poder não poderia significar antes uma extensão inédita do papel das satisfações intrínsecas do trabalho e de participação na actividade económica, bem como da importância dos aspectos vocacionais, do direito à diferença e da expressão da singularidade de cada um?“

Enfim, a discussão continua, e oxalá outros apareçam a dizer também de sua justiça a este propósito.
Até um destes dias no Chave de Ouro ou outra mesa de café da minha velha Abrantes

msp

CN disse...

"a democracia - e que é na realidade um ordenamento que limita severamente esta última - só é legítima se respeitar a , e se subordinar à, "lei natural", nos termos em que a Igreja a define. Ver, por ex., a posição do Papa a este respeito neste texto "BENTO XVI APRESENTA LEI NATURAL COMO FUNDAMENTO DA DEMOCRACIA através do link:: http://www.zenit.org/article-16342?l=portuguese"


Há muito que defendo isto, muito antes sequer de ter tido conhecimento deste importante texto de Ratzinger.

(deixemos a questão da ICAR agora de lado)

Tenho escrito sobre isso no Vento Sueste.

Repare-se, a democracia só tem legitimidade na medida em que a pessoa participa nela de forma voluntária. Repare-se, o direito à auto-determinação dos povos no fundo é a concretização desse princípio abstracto.

As comunidades têm de ter o direito de se separar do circulo eleitoral nacional do momento em que estão inseridas.

É o direito de secessão. todas as comunidades têm de ter esse direito. Um democracia não tem o direito de forçar uma comunidade que quer formar a sua própria soberania/democracia, a participar num circulo de decisão.

O direito de secessão é um direito natural.

Miguel Serras Pereira disse...

CN,

você escreve a propósito da concepção ratzingeriana da "lei natural":

"Há muito que defendo isto, muito antes sequer de ter tido conhecimento deste importante texto de Ratzinger".

Suponho que o Ratzinger e você mesmo pensam as mesmas coisas sobre a "lei natural" graças a uma Revelação que, a mim, pobre ateu, o Espírito Santo não me concede.
Infelizmente, também não me faculta o dom de compreender o que quer você discutir ao certo.
Quando leio, por exemplo, que o direito de secessão decorre da lei natural, não consigo ir mais longe do que isto: ninguém pertence ab initio voluntariamente a uma sociedade (democrática ou não); ninguém tem direitos senão através do reconhecimento instituído pelo grupo a que pertence ou em que se inscreve; uma sociedade tornar-se-á democrática na medida em que cometer igualitariamente aos seus membros a liberdade e a responsabilidade pelas leis e instituições que se dão, tornando-os agentes que têm a seu cargo recriar as condições que os criaram; neste sentido, a democracia é politicamente ateia, ainda que muitos ou a maior parte dos cidadaãos que a exercem sejam, a título pessoal, crentes: porque a lei democrática não é ditada nem decidida por Deus, mas pelos cidadãos e para eles.
Podia continuar, mas suponho que seria uma conevrsa de surdos. Você sabe tudo, e eu sei só algumas coisas, mais ou menos bem, e entre as que sei conta-se a de que saber tudo é uma tentação e uma ilusão a que devo procurar não ceder. Outra coisa que sei é uma que você se recusa a admitir: que a sabedoria ou capacidade de juízo (phronesis - "prudentia" latina) em matéria política não depende no fundamental do muito saber positivo (saber economia, teologia, filosofia, entomologia teórica), ao mesmo tempo que exclui o saber absoluto (por muitas razões, entre as quais avulta a de que afirma haver tempo, morte e criação, irreversibilidade e acontecimento do que não era já antes do fazer que o faz ser).
Assim, talvez possamos ficar por aqui.
Até mais ver, claro.

msp