07/07/10

Futebol, Kissinger e Maradona

Anda para aí uma azáfama em torno das relações entre esquerda, política e futebol, mas, como a coisa não é simples, nós vamos por partes. Em relação a isto e a isto, a ver se nos entendemos: sim, a competição é má e deve ser eliminada da face da terra em todo e qualquer domínio. Mais ainda, diríamos nós: os eliasianos primários, por exemplo, talvez leiam um pouco apressadamente o velho Norbert quando dizem que o futebol é bom porque leva a guerra para um território inofensivo e permite conter a famigerada agressividade humana dentro de quatro linhas. Ora isto é tão estúpido que nem os tipos do Comité Olímpico Internacional compram a coisa (só a vendem). Nós, as pessoas normais, sabemos todas que não há territórios inofensivos e outros ofensivos e que o que se leva para um sítio não tem problemas em mais tarde ir passear para outro sítio. É aliás evidente que nada do que está vivo se contém dentro de quatro linhas que sejam. Erro semelhante, este de arrumar as coisas por gavetas, é o que cometem os mourinhistas que passam a vida a dizer ao povo que o homem está cheio de virtudes privadas (não bate na mulher e é um pai carinhoso) e que por isso não devemos sobrevalorizar os seus vícios públicos (desanca em tudo o que mexe à sua frente, basicamente). Tudo isto é uma treta se não existir nenhuma muralha da babilónia a separar nem público e privado nem paz e guerra. Se existir, digam-me onde está.

Agora, tanto o Peixe como o Cachopo cometem um erro básico de ignorantes na matéria, o que aliás deixa ambos em boa posição para passarem a ir comentar assuntos futebolísticos à tv, embora eu não lhes augure um futuro tão promissor como ao António Pedro Vasconcelos (que até parece um bom comentador de futebol porque apesar de dizer imensos disparates sobre futebol um tipo fica com a sensação que ele ainda assim percebe mais de futebol do que de cinema, seja lá o que for este "percebe mais"). O erro do Peixe e do Cachopo é simples: esquecem que a competição não é condição sine qua non do futebol. Se por competição entendermos um sistema que visa apurar o mais forte, então o futebol não depende da competição. Kissinger, que não era parvo, embora fosse menos esperto do que os seus biógrafos pretendem fazer crer, dizia que o futebol e a América eram duas coisas irreconciliáveis porque um jogo do primeiro poderia chegar ao fim empatado e isso aborreceria de morte a segunda. (Curiosamente, os promotores soviéticos da modalidade, no dia em que organizaram um jogo para o Camarada Estaline, se não estou em erro em plena Praça Vermelha, recearam igualmente que a coisa aborrecesse o grande líder). Eu acho que a América vai desmentir o Kissinger, mas admitamos por um momento que ele tinha um pouco de razão.

A ver, então, se nos entendemos: o futebol é não só mas também um jogo de rua. Jogue-se onde jogar, é um jogo de rua. A final da Liga dos Campeões, que, livre da aura nacionalista do campeonato do mundo, não tem qualquer salvaguarda moral que em sua defesa possa invocar, é ainda assim um jogo de rua. Repito: não só um jogo de rua, mas também um jogo de rua. Não que os impulsos da rua não estejam aí brutalmente reprimidos, basta pensar a lei que obriga a usar a camisola dentro das calções, que ensaia um regresso ao colégio britânico do século XIX, lugar dos primórdios da modalidade; mas o que está reprimido nem por isso deixa de estar.

É claro, entretanto, que isto não significa que devamos romantizar a rua e dizer que a rua é um lugar puro. Não o é e o jogo de bola na rua é não raras vezes marcado pela disputa e pelo desafio. Mas uma disputa e desafio que não remetem necessariamente para o frio gélido e calculista do capital e da razão instrumental de quem só se interessa por vencer, vencer, vencer. A competição não vive sem desafio e sem disputa mas estas vivem sem a competição. E o jogo vive bem com o desafio e a disputa e porém sem a competição.

Bom mas isto é tudo ainda mais complicado quando entramos dentro do terreno jogado, porque depois há um conflito entre o association e o dribbling e aqui a questão do colectivo e do individual começa a trocar as voltas à coisa, apesar de figuras diagonais ao problema, como o ex-jogador Diego Armando Maradona, que, mostrou o antropólogo Eduardo Archetti, aprendeu a fazer um uso do dribbling em que individual e colectivo não se apartavam, ao contrário do que escreveu o Fernando Piteira Santos na sua juventude comunista.

10 comentários:

Miguel Madeira disse...

"E o jogo vive bem com o desafio e a disputa e porém sem a competição."


Consigo imaginar isso para o skate; já me parece mais díficl para o futebol.

Zé Neves disse...

miguel,

não é necessário haver competição (no sentido institucional; campeonatos e afins) para haver prática de futebol.

assim como há milhares de experiências de jogar futebol que não passam por competição. pais a jogar com filhos, remates à baliza, cruzamentos, jogar na praia, etc.

brunopeixe disse...

Zé,

Claro como a água: o futebol não é competição porque, mesmo quando se trata da final da Champions [que não pode, por acaso, acabar sem vencedor - e obrigado por explicares a este ignorante que o jogo pode acabar empatado - sabias disso, cachopo? - é tão difícil, nos dias que correm, saber o que quer que seja acerca do futebol], é sempre um jogo de rua. Dos putos descamisados das favelas, aos palcos milionários a transbordar dos dólares anunciantes e das audiências televisivas, este jogo é, na sua essência, um jogo de rua

E então? Então a rua, diz-nos o zé, é lugar de disputa e de desafio, e não de competição. Não nos diz é: 1º qual é a diferença entre competição, desafio e disputa e 2ª porque é que estas são mais aceitáveis do que aquela.

A competição não está contida apenas no lucro capitalista. Antes estivesse. Ela está no recreio da escola, no concurso da TV, nas economias nacionais e nos mercados financeiros. Se há domínio do real onde a velha noção de ideologia vale é aqui.

Achar que de certo modo ela não está lá quando não estão milhões em disputa, isso tem um nome: romantismo. O mesmo que tu começas por dizer que não, para num gesto joségiliano, caires um pouco mais à frente.

A competição como modo de vida é praticada na rua, naturalizada na rua, para ser aceite no globo. E isto não passa pela razão e pelo cálculo. Parece-me que o desejo, a emoção e o corpo têm muito mais a ver com o capitalismo do que aridez gélida e árida do cálculo racional.

abraços ignorantes

brunopeixe disse...

Zé,

quando escrevi o comentário não tinha ainda visto a tua resposta ao Miguel Madeira.

Não muda, no entanto, o essencial do meu argumento, por uma razão muito simples: a competição não precisa do suplemento institucional para ser nociva.

Como bem sabes, o poder não se faz sentir apenas nos lugares institucionais, mas espalha-se pelo corpo social. Competir, disputar, produzir vencedores e derrotados, ordenar, hierarquizar, no bairro, na escola, ou nos palcos dos milhões é sempre criar uma ordem entre humanos - os melhores e os piores, os mais e os menos capazes.

É esta humanidade que importa acabar e por outra melhor no seu lugar.

abç

João Pedro Cachopo disse...

Além de não ser insensível ao carácter de “jogo de rua” do futebol, aprecio o esforço e a subtileza com que extirpas a “competição” do futebol por via (após a tentação de um desesperado “até porque pode haver empates, o que, a crer em Kissinger, é capaz de chatear os competitivos americanos”), por via, dizia eu, da distinção entre desafio/disputa e competição. Isto em termos gerais, sociológicos, políticos.
Em termos imanentes, nos do que me parece ser a “metapolítica” que tu e o Ricardo “lêem” no futebol (sobretudo em torno da correlação entre movimento colectivo e individual), eu acho simplesmente que ela tem limitações que decorrem de, mais finta menos finta, não se poder abdicar, sem desvirtuar a lógica do jogo, da teleologia do golo e de uma concepção do antagonismo nos termos do qual se uma equipa ganha, a outra perde (ou ambas empatam). Atenção, é assim no futebol como, mutatis mutandis, num sem número de outros desportos. Ou seja, estes dois aspectos constituem um limite, não do jogo enquanto tal, mas de uma sua leitura metapolítica. Em todo o caso, louvo o engenho e o optimismo destas leituras.
Em suma, gosto do lirismo da síntese disjuntiva individual-colectivo do dribbling de Maradona, mas ando mais numa da poética do fora-de-jogo... Temo que não seja o perfil adequado para comentar bola na tv.
Abç

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Bruno,
o Zé talvez seja romântico (tem pinta disso, como o Lefebvre…), mas tu, meu rapaz, pareces ter desistido da acção em vista de uma sociedade de iguais em nome da transfiguração angélica da espécie.
A democracia significa pôr fim à hierarquia e à competição nas relações de poder - da sociedade política - entre os seres humanos: não à hierarquia dos motivos e escolhas de cada um e de todos nem ao combate ou competição entre propostas rivais ou juízos alternativos.
A paideia democrática visa não a supressão dos apetites, que passam pelo desejo e pelo corpo, mas uma relação diferente de cada um com eles e uma expressão deles que não passe pela subordinação e instrumentalização dos outros. Por isso, prefere, apesar de démodée, a sublimação (a não confundir com "desencarnação", e que tem muito que se lhe diga) à engenharia genética ou química que corrija a incorrecção fundamental das pulsões.
Isto, liminarmente, caríssimo. Pois, bem sei, a discussão que aqui se abre - ainda que pondo de parte a hipótese do angelismo que te deu agora para fazer tua - é inesgotável (porque, entre outros aspectos, interna ao agir da autonomia).

Abraço de alerta para ti

msp

brunopeixe disse...

Miguel,

Diria que a acção em vista de uma sociedade de iguais passa necessariamente por uma transfiguração angélica da espécie, que é como quem diz, pela construção de um homem novo. Bem sei que esta expressão não tem as melhores ressonâncias, mas é profundamente banal, se nos lembrarmos que o capitalismo produziu a sua própria subjectividade, a sua humanidade. O que eu digo é que num primeiro momento, quando não a nova subjectividade ainda não está na forja, temos de nos subtrair aquela que nos hegemoniza.

Dito de outro modo, a hierarquia e a competição nas relações de poder da sociedade política estão presentes nos motivos e escolhas de cada um. É por isso que as propostas rivais e juízos alternativos não se equivalem, na medida em que alguns deles visam a perpetuação dessas hierarquias e dessa competição, ou seja, visam a perpetuação dessa dominação. Não concebo uma luta política que não seja orientada para a destruição destas propostas, mais, que não lute por uma humanidade, onde elas sejam impensáveis.

um (simplesmente) abraço,
bruno

Miguel Serras Pereira disse...

Sim, Bruno, como tu dizes: "a hierarquia e a competição nas relações de poder da sociedade política estão presentes nos motivos e escolhas de cada um". Mas o meu ponto é que é, desde já, e não depois do homem novo que nunca o será tanto que não o pudesse ser mais e que não justifique as medidas de transição que sabes, que os "motivos e escolhas de cada um" não se deixam resumir à hierarquia e à competição das relações de poder. Se a preensão do capitalismo fosse integral, como tu pareces figurá-la, talvez a sua dominação não fosse eterna, mas isso em nada dependeria de nós: talvez da química, talvez da evolução das espécies, talvez de não sei que efeitos retardados do Big Bang.
E aqui tudo volta ao princípio.
Abraço para ti

msp

Anónimo disse...

Sempre fomos conhecidos - nós, os portugueses - por esta retórica peculiar: dizer coisas mas nunca falar delas. Se querem pensar o futebol, utilizem os pés. É que estes também pensam - e rápido!

Ricardo Alves disse...

«a competição não é condição sine qua non do futebol»

Que distraído que eu ando, que sempre pensei que o objectivo fosse marcar golos e ganhar...