O comentário que o Miguel Serras Pereira deixou a este post do João Valente Aguiar, resume globalmente muito do que tenho afirmado, a propósito dos textos do João Bernardo (JB, doravante) sobre o ecologismo, em comentários deixados em alguns dos posts que aqui no Vias de Facto recentemente abordaram o assunto. No entanto, achei que seria igualmente importante contestar algumas das afirmações e teses defendidas pelo JB no texto que motivou o post do João Valente Aguiar acima mencionado.
Diz-nos JB que a agricultura convencional é mais produtiva, quiçá da ordem de 20% mas com grande incerteza, que a agricultura orgânica (que em Portugal se designa por biológica). E que devido a este diferencial, a opção pela agricultura biológica em detrimento da agricultura convencional condenaria à fome e à morte milhões pelo mundo inteiro.
Em primeiro lugar, convém salientar, mais uma vez, que não há nada no ecologismo que exija a opção pela agricultura biológica em detrimento da convencional. Se um ecologista restringir a sua análise aos impactos locais do modo de produção agrícola, e se convencer-se de que a agricultura convencional é realmente mais produtiva, ou seja de que precisa de menos terra para produzir o mesmo que a agricultura biológica, então pode perfeitamente concluir que apesar da agricultura convencional degradar em muito maior grau os ecossistemas locais, globalmente permite a conservação integral dum maior número de ecossistemas porque precisa de menos terra. Por variadas razões, não é essa a opnião da grande maioria dos ecologistas. Apenas quero com este exemplo salientar, mais uma vez, a definição muito peculiar que JB tem do ecologismo. Acontece que, tal como as opiniões partilhadas pela maioria daqueles que se designam por comunistas não definem o que é, ou que pode ser, o comunismo (será o comunismo o que defendem os militantes do PCP, de longe o maior grupo de auto-denominados comunistas em Portugal?…), também as opiniões prevalecentes entre ecologistas não definem o ecologismo.
Em segundo lugar, dando de barato que a agricultura biológica é realmente menos produtiva que a agricultura convencional no curto prazo, convém não esquecer que a segunda é um dos principais responsáveis pela contínua degradação do solo. Nesta entrevista, por exemplo, que sintetiza bem a actual situação, mas muitos outros documentos estão disponíveis sobre o tema, pode-se ler:
"A rough calculation of current rates of soil degradation suggests we have about 60 years of topsoil left. Some 40% of soil used for agriculture around the world is classed as either degraded or seriously degraded – the latter means that 70% of the topsoil, the layer allowing plants to grow, is gone. Because of various farming methods that strip the soil of carbon and make it less robust as well as weaker in nutrients, soil is being lost at between 10 and 40 times the rate at which it can be naturally replenished. Even the well-maintained farming land in Europe, which may look idyllic, is being lost at unsustainable rates."
Como se pode ler no final da entrevista mencionada, a solução para este problema passa pela integração nas práticas agrícolas correntes dos princípios fundadores da agricultura biológica: implementação de medidas de protecção dos ecossistemas, o que passa pela redução severa na utilização de pesticidas; uso de adubos de origem orgânica; prática mista de agricultura e pecuária, e diversificação das espécies plantadas; precaução na utilização de meios mecânicos, principalmente do ponto de vista do seu impacto nas camadas mais superficiais do solo.
Portanto, quando falamos de productividade ou eficiência económica, não nos podemos cingir ao curto prazo, sob o risco de as consequências que se pretendem evitar hoje, se façam sentir com muito mais intensidade num futuro próximo. Sendo a sustentabilidade um dos princípios básicos do ecologismo, não deixa de ser estranho que JB não lhe digne uma linha.
Em terceiro lugar, ao dar a entender que a productividade agrícola, no curto prazo, é o factor principal que define a maior ou menor capacidade duma sociedade em se alimentar, JB omite todos os outros factores que também são responsáveis pela contínua existência de fome no planeta. Um é, obviamente, a extrema desigualdade no acesso a bens alimentares. Estes existem em quantidade suficiente para alimentar toda a actual população mundial, com folga suficiente para incluir o seu previsível aumento nas próximas décadas. Outro factor, é o imenso desperdício inerente ao sistema capitalista: cerca de 1/3 de todos os bens alimentares produzidos a nível mundial são desperdiçados. Este desperdício é maior exactamente nas sociedades com os sistemas capitalistas mais avançados, como nos EUA (30% dos bens alimentares são simplesmente deitados fora). Finalmente, uma parte muito significativa da produção alimentar mundial, em particular no que concerne grãos como a soja, o trigo ou o milho, é utilizada para, nos primeiros dois casos, produzir rações para animais, e no segundo caso, para a produção de bio-combustíveis. Tendo em conta que a produção pecuária, relativamente à produção estritamente agrícola, é um processo muito mais ineficiente (sob vários pontos de vista, nomeadamente em termos da extensão de terra e quantidade de energia e água necessárias) de produção de calorias para consumo humano, o raciocínio de JB deveria levá-lo obviamente a pugnar pelo vegetarianismo. Talvez goste tanto de bifes, que tenha preferido nem sequer reflectir sobre o assunto...
Consideremos agora a parte do texto do JB em que este se refere aos organismos geneticamente modificados (OGM). Começa por confundir manipulação genética com os processos tradicionais que são utilizados na tentativa de salientar certas características quer em espécies animais (por exemplo, a corpulência) quer vegetais (por exemplo, a resistência à seca). Uma das diferenças óbvias é patente na caracterização que fiz dos processos tradicionais: apenas actuam ao nível duma espécie, sendo incapazes de conseguir que os elementos duma espécie incorporem no seu património genético características de outra espécie (um grupo de seres constitui uma espécie se estiver isolado em termos reprodutivos de outros grupos). Ora, a manipulação genética produz seres que integram no seu património genético características exteriores à espécie em que se inseriam (notavelmente, espécies vegetais nas quais são inseridos genes de origem animal). Qual é o problema disto? Entre outros, a maior imprevisibilidade na evolução genética futura destas espécies, e seu impacto quer a nível ambiental quer a nível económico (se os genes inseridos numa planta útil para a alimentação humana são transmitidos a plantas que com elas competem, também conhecidas como daninhas, as consequências podem ser desastrosas). A própria inserção de genes num dado genoma é um processo, como é fácil de compreender, que gera instabilidade ao nível molecular, levando a que haja uma maior taxa de mutações. Aqui podem encontrar uma extensa (123 páginas) desmontagem de toda a propaganda pró-OGM difundida por uma indústria apenas interessada em obter lucros, especialmente no longo-prazo, independentemente do impacto que venha a ter na saúde humana, integridade dos ecossistemas ou produtividade agrícola. É que o objectivo estratégico dessa indústria é nada mais nada menos que colocar sob sua dependência a esmagadora maioria da produção agrícola mundial, impondo um monopólio de facto sobre a produção de sementes, através duma política extremamente agressiva, do ponto de vista legal (e ilegal..), assente nos seus direitos de patente. Mais uma omissão do JB, que tão preocupado em denunciar a insensibilidade social dos ecologistas, se "esquece" de elogiar as "óbvias" preocupações sociais da esmagadora maioria daqueles que defendem o uso de OGMs. Não terá se informado o suficiente? Ou não terá achado relevante?
Em termos globais, no texto do JB, como noutros por ele escritos sobre temas como a globalização vs. localização da produção, é feita a apologia da eficiência económica per se (ie. como algo evidente, sem requerer justificação à priori). Ora, nunca foi demonstrada, na prática, a existência de qualquer sistema sócio-económico mais eficiente do ponto de vista económico do que o Capitalismo. Será que decorre daqui que JB é, na verdade, um defensor do Capitalismo que ainda não saiu do armário?… Ou existirão outros critérios que também devem ser valorizados quando se analisa um sistema produtivo, social ou económico? Quais? Porquê? Talvez tal debate fizesse mais sentido antes de mais.
Finalmente, tal como chamei a atenção neste post, a propósito da (aparente) defesa do conceito de Nação pelo Jorge Bateira, é essencial que em qualquer debate, mesmo que no interior da Esquerda, não se usem conceitos característicos da Direita e/ou defendam políticas maioritariamente apoiadas por aqueles aos quais a Esquerda se opõe. Sem que pelo menos se faça um esforço de diferenciação de propostas. Ora, JB no seu texto não revela qualquer preocupação desse tipo, defendendo incondicionalmente políticas (anti-agricultura biológica, anti-protecção ambiental, pró-OGM) apoiadas integralmente pela oligarquia internacional e brasileira. Em particular, como justificar um texto onde se critica o MST, e se omite qualquer crítica ao latifúndio no Brasil? Será por este ser a montra de todas as técnicas de produção agrícola advogadas pelo JB?
23/09/13
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12 comentários:
depois de uma série de posts bastante trapalhões sobre ecologia, ambientalismo, urbanismo, agricultura, este é o primeiro post com alguma fundamentação minimamente séria e uma abordagem mais honesta e a alertar para a miopia de visões redutoras e de curto-prazo.
Vadio em Passa a Palavra
[...]
Sabendo que a história real das lutas sociais e ainda mais a das erupções revolucionárias, guardam evoluções e vias que não podemos prever, sub-estimar uma crítica profunda ao modelo capitalista de industrialização (se não formos mais longe do pós-guerra) e a forma como ele moldou a urbanização do território (todo ele) é politicamente mais obscuro do que não rastrear a genealogia da ecologia. Obscuro, porque o modelo de produção capitalista (e no que ele formatou a industrialização e urbanização) não dá resposta nem a uma radical democratização do uso racional das fontes de energia e do usufruto equitativo dos bens materiais, muito menos à emancipação da autonomia humana na capacidade que este tem de dominar, criar e saciar as suas próprias necessidades – visão de desenvolvimento humano e colectivo que por razões óbvias me parece incompatível com os modelos políticos de industrialização e de urbanização, sob os quais vivemos desde há décadas.
Obrigado, Vadio, por chamar a atenção para o extenso comentário que deixou no Passa Palavra ao texto do João Bernardo. Merece ser lido.
A longa e profunda resposta de " Vadio " assinala uma mutação muito assinalável no desenrolar desta polémica inolvidável- e politicamente criadora- em torno da Ecologia Política. Justamente, J. Bernardo " deixa-se " subjugar pelos diktats da famigerada " racionalidade " e " eficiência " económica dominantes, directa e subliminarmente dependentes dos mais sinistros sintomas e estigmas da luta de classe: a " razão cognitiva- instrumental "gerada e auto-sustentada pela violência essencial do salariato, a peste das hierarquias e a lógica plutocrática dos aparelhos burocráticos. Liberté et égalité ! Niet
Como já referi num comentário anterior não há possibilidade de um debate sério se alguns podem introduzir longos textos e os restantes só podem fazer meros comentários. Evidentemente que todos sabemos que a condição dos blogues não é democrática, horizontal, nem igualitária...
Tendo sido eu que introduzi um curto parágrafo do interessante texto do Vadio no Passa a Palavra, já que não o podia fazer na totalidade, sugiro a sua edição integral pelos administradores do Vias de Facto para que os leitores sejam confrontados com a melhor crítica escrita até agora neste debate acerca dos textos anti-ecológicos de João Bernardo.
"É incrível como em meios esquerdistas se toma como garantido que os transgénicos são uma catástrofe. Isso só prova que esse meio é completamente autista. Ignoram a ciência por trás dos transgénicos, os estudos sobre eles, e repetem lendas urbanas e mitos sem o menor pudor. E quem diz transgénicos diz energia nuclear e a suposta barbárie industrial em que estamos a viver. Apenas mitos para justificar a aceitação das suas miseráveis propostas, que convenientemente prescindem do proletariado, pouco dado a abraçar o moralismo anti-consumista. Dum simples acidente industrial fazem uma catástrofe de proporções planetárias, ignorando convenientemente as vidas poupadas por essas indústrias, que não servem apenas para produzir lucros mas que produzem bem-estar e prolongam e melhoram a vida da maioria."
Betinho no Passa a Palavra
Concordo grosso modo com o texto, e custa-me a compreender como é que as objecções nele formuladas não são evidentes para qualquer pessoa.
A agricultura industrial só é mais eficiente e produtiva graças a dois factores (candidamente ignorados por J Bernardo e outros pensadores de igual calibre), e esses dois factores são as externalidades e a disponibilidade de combustíveis fósseis (historicamente) baratos e abundantes. Foram esses dois factores que permitiram o desastre da revolução verde, que em cinquenta anos fez triplicar a população mundial. As externalidades, cujo custo, lembre-se, recai não sobre os produtores, mas sobre a comunidade inteira, incluem a acidificação dos oceanos, o colapso das colmeias, a perda da camada superficial do solo, mas também custos sociais como as chamadas doenças da civilização ou o amontoamento de seres humanos em favelas insalubres, fruto da desagregação das comunidades tradicionais.
Com o preço dos combustíveis cada vez mais alto e a pressão insustentável sobre os ecossistemas, nós criámos uma situação insustentável a médio prazo e já explosiva em muitos lugares do mundo. Neste aspecto, o Egipto é um país emblemático para quem souber interpretar os dados reais, que têm que ver com sobrepopulação e pico petrolífero, esses temas tabu da esquerda.
Acreditar que é possível prolongar por muito mais tempo um modo de produção agrícola que gasta dez calorias de energia fóssil por cada caloria de alimento, é viver num mundo de fantasia.
Portanto, a situação é MUITO mais grave do que por aqui se julga.
A produção agrícola passará em breve a ser, inevitavelmente, muito mais local do que global, e muito mais manual do que mecânica. E a culpa não é dos ambientalistas (que JB - que cómico! - confunde com ecologistas), mas sim dos limites físicos do planeta terra.
Alguns destes posts sobre ecologismo, os mais bernardianos, parece-me tão alheados da realidade que me dá a sensação de estar perante um grupo de pompeianos a discutirem calmamente a melhor forma de capitalizar a iminente erupção do Vesúvio. Temos a lava a chegar à porta, e os joões bernardos ainda a duvidar da "cientificidade" dos vulcões, ou a perguntar-se se os vulcões contribuem positivamente para a consolidação da consciência de classe e das dinâmicas de libertação do, etc... Desculpem, mas é absolutamente ridículo. O way of life capitalista não é sustentável (é incrível ter de dizer isto a gente de esquerda!), os padrões de consumo dos países da OCDE não podem ser transponíveis para os outros 6 mil milhões de habitantes do planeta terra. Aquilo a que certa esquerda chama progresso económico e social (o acesso de todos aos padrões de consumo da burguesia ocidental) não é possível. Temos pena, mas é assim. O futuro vai ser mais pobre para todos, e o melhor que uma política de esquerda pode fazer é distribuir o mal pelas aldeias e gerir o decrescimento económico. Tudo o resto são fantasias da era da abundância, que ACABOU.
jms
And that leads me to the fourth dumb idea that neoclassical economics advocates promote as a good thing — a good economy is a growing economy. It is so blatantly dumb, as in completely ignoring the laws of nature, that the fact that this idea is widely accepted by the majority of people in this world is one of the main reasons I concluded that humans are just not sapient enough to manage our cleverness. You don't even need systems science to see how incredibly dumb this is. There are no natural systems that are closed to mass inflows that can grow forever. It boggles my mind how so many presumably smart people can believe that the economy must grow in order to be healthy.
http://questioneverything.typepad.com/question_everything/
Notícias do mundo real
The fundamental problem is that we are working down our stock of fossil energy at an incredible rate. Fossil fuels account for over 80% of the energy driving our economy. We have probably reached or might have even passed the peak of extraction, meaning that over the next several decades we will have less and less fossil fuels to power society. But it is even worse than that. The energy cost of extracting those fuels is climbing exponentially. The extraction of tar sands, tight oil and gas, and deeper coal veins takes far more energy than was the case historically. That means there is less net energy for doing economic work in each time period going forward.
And, in spite of the neoclassical belief in substitution effects resulting from high prices, we really don't have substitute sources of high power energy needed to run our current developed world economies, let alone bring the developing economies up to some "reasonable” standard of living. At best we might be able to position ourselves to live off of real-time solar inputs if we invest heavily in wind, solar, and hydro power generation now before the fossil fuels become useless. But we would have to substantially diminish our consumption of energy on the lifestyle side — much more so than most people will be willing to do voluntarily.
Esparsa e melindrosa preguicite aguda é o que exala da prosa dos adeptos do infeliz texto de J. Bernardo. Parece impossivel assistir a um tão piedoso acto de miserabilismo teórico e oportunismo politico sem remissão. Gorz/ Bousquet, Dumont, Castoriadis, Vaneigem/Riesel, há muito que denunciaram o embuste mortal da oposição- politica, claro !-às teses essenciais da Ecologia Politica. O famigerado e contraditório " regresso a Marx " gera cada quebra-cabeças...Niet
Tem-se introduzido neste debate a questão do pico dos combustíveis fósseis. Para começar relembro que este conversa tem mais de 40 anos. Depois, e sem querer levar a conversa para mais off-topic, os operadores do mar do norte (noruega e UK) estimam que com a tecnologia já existente têm pelo menos mais três décadas de poços que podem extrair com facilidade ao ritmo de hoje. Como a tecnologia ainda tem margem para evoluir e os preços têm aumentado, essa estimativa será conservadora. Não são os maiores produtores, é certo, mas no médio oriente ainda nem se está a explorar o petróleo mais difícil. Portanto, não é por aí.
Anónimo,
sobre o pico petrolífero, vá-se informar, se quiser. Por exemplo, aqui http://crashoil.blogspot.pt/ ou aqui http://ourfiniteworld.com/
ou no livro, com tradução portuguesa, de Jeff Rubin.
Não venha é com a treta de que a ideia tem mais de 40 anos. Se há tanto petróleo no mar do norte, porque é que o RU passou de exportador a importador de petróleo? E se a teconologia resolve todos os problemas, porque é que a produção petrolífera global está estagnada desde 2006, apesar dos altos preços do crude convidarem ao do drill drill drill?
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