Sob um título intrepidamente inspirado, "A Permanência no Euro É o Suicídio da Nação", Jorge Bateira explica:
(…) do ponto de vista do eixo Berlim-Frankfurt, Portugal ainda pode ser um caso de sucesso. Apenas precisa de colocar na Constituição o Tratado Orçamental para impedir políticas orçamentais contracíclicas, reconverter o Estado social num pobre Estado para pobres, destruir a classe média e os mecanismos de ascensão social que a mantêm, reduzir ainda mais 30% aos salários do sector privado (excluindo gestores e administradores), fazer da emigração uma válvula de escape das tensões sociais e, sobretudo, impregnar a sociedade portuguesa de uma sensação difusa, misto de culpabilidade e inevitabilidade. Quando tivermos chegado aí, a economia entrará numa estagnação duradoura, alternando pequenas recessões com períodos de crescimento sem criação de emprego. Portugal será então um país simpático e (ainda mais) barato para os reformados da Europa rica. Não terá dinheiro para manter as infra-estruturas públicas em todo o país, mas cuidará das zonas de acolhimento dos turistas, como se faz em Cuba.
Tem visos de verdade, é inegável. E mais teria ainda se, em vez do "ponto de vista do eixo Berlim-Frankfurt", Bateira tivesse escrito "do ponto de vista da oligarquia europeia, bem como, em particular, do ponto de vista do governo português e dos partidos do arco da governação, PSD, PS e CDS-PP". Porque não o faz, então? A resposta é simples, se o fizesse, arruinaria a sua própria tese, segundo a qual o "ponto de vista" e as opções sociais e políticas que descreve resultam de uma imposição do estrangeiro, de uma violação da soberania portuguesa e da indpendência nacional, pelo que, sendo contrárias aos interesses dos portugueses, mas proveitosas para os outros povos, só a via cubana da saída do euro (negociada a bem com o inimigo, para que a cereja não falte em cima do bolo) pode evitar a Portugal o isolamento e a deriva isolacionista que decorreriam da sua transformação numa nova Cuba.
Vale a pena lembrar a propósito de tudo isto o que Heinrich Heine escrevia, a meados do século XIX, de um ponto de vista antagónico, a que Hannah Arendt chamaria o ponto de vista do pária, e que, a meu ver, ainda hoje basta para arrumar o essencial da questão:
Neste diário farei todo o possível por dar a conhecer aos franceses a vida intelectual dos alemães: tal é actualmente o dever da minha vida: talvez eu tenha a missão pacífica de aproximar os povos. É isso que os aristocratas temem acima de tudo. A destruição dos preconceitos nacionais, a erradicação do espírito patriótico de vistas curtas, eis o que os priva dos seus melhores meios de opressão. (H. Heine, Lutèce, "Préface", p. IX, Michel Lévy frères, éditeurs, 1855)
É que Heine sabia, e di-lo aqui a seu modo, que o culto da independência nacional engendra a dominação imperialista e a desigualdade entre os povos, como sabia também, tendo-o escrirto com todas as letras, que onde se começa por queimar os livros se acaba por queimar os homens.
3 comentários:
O título dele "Permanecer no euro é o suicídio da nação" até faz algum sentido. Um bom esquerdista deveria defender o fim das nações. Enquanto os capitalistas vão actuando em todas as escalas - locais, nacionais, continentais - a maioria da esquerda, nos últimos 50 anos, vive entretida a suspirar pela nação e pelo "nobre povo e imortal". Em vez de se pensar para além da transnacionalização capitalista, os carpideiros nacionais choram pelo «esforço de sangue, suor e lágrimas das gerações que nos precederam e tornaram Portugal uma comunidade, um Estado-nação com uma cultura de que nos orgulhamos e que enriqueceu a Europa e o mundo». Este tipo de crítica ao (que acham que é) capitalismo só é feita pela esquerda e pela direita conservadora. Mas nem sempre foi assim.
A esquerda que se formou e desenvolveu no quadro de uma cultura universalista é hoje uma mistela de moralismos culturalistas e particulares. Se até há poucas décadas alguma esquerda ainda se caracterizava pelo desprezo da nação e pelos particularismos castradores de uma unidade entre todos os explorados e oprimidos, a esquerda é hoje quase totalmente colonizada por sentimentos saudosistas de preservação da tradições, da cultura nacional e o único argumento que contrapõe à globalização do capital é o recolhimento ao seu cantinho nacional.
A esquerda hoje faz lembrar os hobbits que suspiram por preservar um mundinho próprio isolado do resto do mundo, cada um cultivando umas merdices, sem integração tecnológica internacional, e com cada povo enfiado numa gaveta cultural. Não por acaso a categoria que a esquerda mais preza é o povo. Quando muito, a classe trabalhadora é, para essa gente, apenas uma parte do povo que nos "há-de guiar à vitória". O ideólogo da esquerda de hoje é o Tolkien.
Gostava de ler mas não encontro, seguindo a ligação apontada, a frase de H. Heine na página IX daquele prefácio, na edição francesa. Está ali ou há emenda a fazer na citação da página? Obrigado.
Caro Anónimo,
o lapso é meu. O excerto citado não pertence a "Lutèce - ou Lutetia, título alemão -, mas aparece numa carta citada por G. Schlocker num artigo sobre Heine. Como há passagens de inspiração afim em Lutèce, a confusão explica-se facilmente. Mas peço desculpa por ela. Aqui fica o link para o texto de G. Schloker: http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/roman_0048-8593_1998_num_28_101_4325
Obrigado por me dar este ensejo de corrigir o deslize.
Cordialmente
msp
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