Quem quer falar de muitas coisas várias, acaba mais tarde ou mais cedo por falar de reis e da necessidade de lhes cortar, mais do que a cabeça física, a realeza que encabeçam, se não quiser ver limitadas as coisas de que pode falar e quiser falar em pé de igualdade com os seus interlocutores.
Mas quem fala de reis, fala também de papas - dos papas e bolos com que se enganam e calam os tolos -, e quem fala de papas fala de Bento XVI. E, se quiser falar da visita política - e da política da visita - do Papa, para breve prevista à região portuguesa, deve falar também da sua original concepção da "democracia" determinada pela "lei natural".
Com efeito, para Bento XVI, como para o cardel Ratzinger que o antecedeu, a democracia não pode ser deixada à vontade humana e precisa de se fundamentar, subordinando-se a ela, numa “lei natural” que a antecede e é uma muralha que nos protege do “relativismo ético”. Esta concepção tem sido repetida pelo Papa de muitas maneiras e em muitas ocasiões, e encontra uma formulação simples e inequívoca, por exemplo, na alocução que dirigiu à Comissão Teológica Internacional, no termo de uma dos seus convénios anuais, a 5 de Outubro de 2007, que pode aqui valer como fonte suficiente.
A “lei natural”, inscrita por Deus no coração de todos os homens, de que Bento XVI nos fala , não pode ser uma "lei da natureza" referindo-se a uma certa regularidade e constância de fenómenos e relações entre eles, e que se observa necessariamente em certas condições, pelo que seria insensato decretá-la ou impô-la como uma norma jurídica. Dir-se-á que é então um preceito ou conjunto inato de preceitos anteriores à experiência humana (individual ou histórica), mas inequivoca e intemporalmente presentes à consciência. Mas esta "lei natural"precisaria de ter uma universalidade, uma clareza e uma intemporalidade que a história desmente. Usos e costumes interditos num lugar ou numa época são recomendados ou impostos noutra, e não me refiro a pormenores, mas a coisas como o canibalismo e/ou as mutilações piedosos (ou seja, ritualmente consagrados), à escravatura, às relações entre mulheres e homens, entre gerações, à regulamentação da sexualidade, etc., etc., etc. Enfim, praticamente sobre todos os pontos acerca dos quais uma moral historicamente documentada tem alguma coisa a dizer, as variações e as oposições são legião. Pelo que concluímos que a “lei natural”, inscrita por Deus nos nossos corações, é a versão particular que Bento XVI adopta da moral cristã, ou, quando muito, de uma moral que não colida ou ponha em causa em profundidade a “lei cristã”, tal como a hierarquia romana a estabelece e interpreta.
Assim, quando fala de garantir a democracia fundamentando-a na “lei natural”, o Papa entende substituir à democracia um poder político acima da vontade e da capacidade de deliberação e decisão dos cidadãos: um poder de Estado cuja superioridade a Igreja sacralizará acima do exercício da cidadania democrática, e que em troca dará à Igreja um lugar superior na hierarquia do poder temporal.
Ora, se a democracia estipula cidadãos capazes de governar e ser governados - tal é, de resto, a definição que Aristóteles propõe do cidadão -, que se dão a sua própria lei, sabendo que esta é uma sua criação e sua responsabilidade, e podem por isso modificá-la por sua vontade, isso significa que o fundamento da lei é o que, após deliberação e decisão abertas igualitariamente a todos os cidadãos, parece bom a estes últimos: parece bom ou melhor até nova ordem, uma vez que o exercíco do governo democrático exclui precisamente a sacralização da lei ou de qualquer expressão – sempre em aberto – da vontade dos cidadãos governantes.
É por isso que, depois de nos fazer pensar na novilíngua e no duplipensar de Orwell, ao chamar democracia à supressão da igualdade de poder e da autonomia colectiva e individual que é sua condição - e meio e fim, simultâneos -, o mínimo que podemos dizer é que Bento XVI rivaliza com outro personagem célebre de Lewis Carroll. Quer dizer com Humpty Dumpty, na sua maneira de usar as palavras “lei natural” e “democracia”, fazendo-as significar “exactamente aquilo que eu quero que signifiquem, nem mais nem menos”.
Como Alice, que objecta a Humpty Dumpty que "glória" não significa um "argumento esmagador", o cidadão comum poderá então objectar ao Papa que "hierarquia romana" não quer dizer "democracia", antes de o ouvir responder: "-Quando uso uma palavra […] ela significa exactamente aquilo que eu quero, nem mais nem menos". E de nada servirá tentar inquirir de Sua Santidade como lhe é possível "fazer as palavras significarem tantas coisas diferentes", porque visivelmente aos olhos do Papa, se trata de uma falsa questão, pois, como para Humpty Dumpty: "A [verdadeira] questão é saber […] quem vai ser o chefe, e mais nada".
Conclusão: se quisermos falar de todas as várias coisas que nos pareçam vir a propósito, e fazê-lo como livres e iguais entre nós e cada um consigo próprio, para assim governarmos os nossos trabalhos e dias, teremos de acabar com a "lei natural" que reserva a alguns a definição das questões pertinentes, a administração do sentido e o poder de chefiar o que fazem e dizem os outros.
9 comentários:
Caríssimo Miguel: Eu estava a fazer tempo para não encabeçar o ritual necessário da formulação de votos. O desafio é enorme mas, por certo,o conjunto heterogéneo e plural da equipe tem pernas e neurónios para andar. De qualquer modo, eu tinha optado por uma postura menos institucional, menos protocolar e tinha ousado revelar os muitos e-mails e textos que construiram o arranque do Vias de Facto. Bom vento. Niet
Ni Dieu ni Maître, mon vieux.
Merci - sempre é melhor que "obrigado" para se dizer a um prosélito de Bakunine - et une merveilleuse fin de soirée, malgré tes critiques sans pitié. Salut
msp
E os meus e-mails com longas citações do Bataille? Cito o Bakounine para não me etiquetarem de castoridiano/lefortiano! E tenho outras armas secretas, que trabalho a uma média de 8/10 horas diárias...Ehe-ehe-ehe: como escreve a Zazie! Niet
Ola,
Não tive tempo de ler o texto em pormenor, mas ca voltarei (isto da lei natural e do direito natural tem muito que se lhe diga e costumamos cometer graves confusões a este respeito, em parte porque nos referimos a conceitos que mudaram radicalmente de sentido durante os séculos XVI e XVII).
Este comentario é so para dar os parabens pelo blogue e dizer que vous ser leitor (e critico) atento.
Força !
Caro João Viegas,
obrigado, antes de mais, pela saudação e encorajamento. Contamos consigo para animar o debate.
Quanto ao meu texto, a minha intenção não era discutir as concepções da "lei natural" e do "direito natural", mas assinalar que Bento XVI procede, quando invoca a primeira, a uma naturalização da moral cristã e dos seus preceitos, em termos que visam furtar à deliberação/decisão democráticas questões políticas essenciais.
Cordial abraço
msp
Uma equipa interessantemente diversa.
Um excelente texto do Miguel Serras Pereira.
Bem vindos!
Caro Ricardo Alves,
obrigado, uma vez mais (pois já agradeci a sua generosa atenção ao Vias na caixa de comentários do post que nos dedicou no Esquerda Republicana). Seja bem-vindo também você a estas paragens onde espero continuar a encontrá-lo.
Laico e cordial abraço
msp
Miguel: dirijo-me a ti porque, desta malta, és o único que eu conheço pessoalmente.
Viva e boa sorte! E por favor não se deixem enredar em debates de lana caprina.
Socialismo ou barbárie,
venceremos!
manel resende
Caríssimo Manuel Resende,
ainda bem que apareces - espero que reincidas e não nos poupes em disso sendo caso.
Já agora podias fornecer-me coordenadas de contacto, para ver se a gente conversa.
De qualquer modo, passamos a contar aqui contigo.
Pela autonomia democrática (que, sim, pá, implica o socialismo!) contra a barbárie que alastra. Avante, Manuel, que temos muito caminho a fazer.
Abraço grande
miguel
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