03/04/10

Revolução, esperança e nostalgia

Revolución cubana

Poucos temas são tão delicados para a consciência histórica partilhada pelas esquerdas quanto Cuba. Sublinho: «esquerdas» e não «esquerda», uma vez que para regressarmos ao ponto em que era possível, no mundo capitalista, uma proximidade de expectativas e de metas entre as correntes divergentes que se reclamavam do socialismo (e que se reivindicavam da esquerda como «casa comum») será preciso recuarmos ao tempo em que, há mais meio século, numa noite de São Valentim, os barbudos da Sierra Maestra entraram em Havana para expulsar o ditador Batista e os seus patronos americanos. Naquela altura, é bom relembrá-lo, a Revolución cubana, apesar da desconfiança inaugural das rígidas chefias da União Soviética, fazia o pleno da simpatia e das expectativas – passe o conceito hoje fora de moda – da «humanidade progressista».

Criava-se então uma «lenda de Cuba», grata a um grande número de intelectuais da esquerda ocidental, e que foi capaz de seduzir, como experiência onde era possível projectar todas as expectativas, uma boa parte da juventude do mundo inteiro. A guerra de guerrilha que se seguiu ao acidentado desembarque do Granma e que conduzira em pouco tempo à derrota de um exército e de uma força aérea apoiados pelo governo dos Estados Unidos, parecia, vista de fora, algo de miraculoso. E o facto da pequena ilha açucareira, situada a apenas noventa milhas marítimas da Florida, se haver tornado o primeiro «Estado socialista» do hemisfério ocidental, não fez senão crescer essa admiração. Em The Fellow-Travellers. Intellectual Friends of Communism, David Caute observou que a revolução cubana se tornara à época «a Revolução», funcionando como um exemplo, reforçado, sobretudo entre as gerações que acabavam de despertar para a experiência política, pelo facto de parecer desenvolver-se «sem cedências», ultrapassando, assim escrevia Simone de Beauvoir, «as noções de possível e de impossível». E, aspecto não menos importante, sem copiar o figurino de qualquer um dos sistemas de poder então conhecidos.

O controlo de um Estado independente por uma multidão de homens e mulheres sem rugas ou complexos, belos e de porte informal, quase romântico, que utilizavam positivamente e sem limites palavras proscritas ou depreciadas em quase todas as partes –«revolução», «rebeldia», «anti-imperialismo», «igualdade», «colectivização», ou «alfabetização» – e actuavam centradas no presente, potenciou essa simpatia que tocou intelectuais e activistas, jovens ou maduros, tão diferentes como Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Régis Debray, Susan Sontag ou Hans Magnus Enzensberger. O desembarque pró-americano de 1961, na Praia Girón/Baía dos Porcos, o apoio político e militar prestado pelas novas autoridades cubanas a diversos movimentos de guerrilha espalhados pelo mundo, o empenho na alfabetização maciça da população da ilha, o esforço de colectivização da maior parte da propriedade fundiária, uma indiscutível ampliação dos serviços prestados aos trabalhadores nos domínios da saúde e da educação, fariam com que a auréola de exemplaridade do regime cubano não parasse de aumentar, sendo ampliada ainda com a actividade carismática de figuras desprovidas dos maneirismos e da linguagem estereotipada dos estadistas conhecidos, como Fidel, Camilo Cienfuegos ou o singular «Che» Guevara. Os textos de Régis Debray (Révolution dans la Révolution, 1967) e de K. S. Carol (Guérilleros au Pouvoir, de 1970), na sua época muito lidos e traduzidos em diversas línguas, irão contribuir, e bastante, para ampliar esse processo de mitificação do significado e da missão daquela particular estirpe de «revolucionários em movimento».

Uma imagem poderosa da ilha de José Martí como, nas palavras de François Hourmant, um «cocktail de rum branco e de aparente euforia geral», ou como localização da utopia terrena possível, onde até o trabalho possuía uma dimensão festiva, fixava-se pois em numerosos ambientes, produzindo um «tropismo cubano» com um vigor tal que ainda hoje perdura na lembrança de bastantes pessoas da geração que recebeu o seu primeiro impacto, dando forma a algumas das suas actuais convicções, ou fazendo com que outras se continuem a mostrar incapazes de criticar abertamente as autoridades de Havana, ainda que muitas das iniciativas por estas tomadas nas últimas décadas já lhes não pareçam sedutoras ou sequer justificavéis. Como escreveu o ensaísta e crítico de arte cubano Iván de la Nuez em Fantasia Vermelha (subtitulado Os Intelectuais de Esquerda e a Revolução Cubana e editado entre nós pela Angelus Novus), para um certo número de pessoas «Cuba não é apenas Cuba, é qualquer coisa mais», funcionando como «um pretexto para criticar um mundo ordenado sob o signo do mercado, e, por extensão, os males do capitalismo», e mostrando ao mesmo tempo que aquilo que a maior parte dos cidadãos do planeta designa por democracia é alguma coisa de dispensável. Para elas, a frase quase desesperada com a qual Sartre encerrou a sua visita a Cuba – «os cubanos devem triunfar ou perdemos tudo, até a esperança» – faz ainda todo o sentido. A esperança associada à nostalgia é, de facto, uma arma poderosa. Uma arma que por vezes pode cegar.

Recordo aqui três posts que fui escrevendo e permanecem actuais: A imensa tristeza (já de 2003), Relógios cubanos - 50 anos depois e Toda a dissidência será castigada.

Publicado também em A Terceira Noite

6 comentários:

José António disse...

Chegou o Professor Doutor! Os seus colegas informaram e denunciaram a actual ditadura cubana, você faz history digest para ignorantes e não chega a dizer ao que vem.

Rui Bebiano disse...

Para alguma coisa serve a história e não é apenas para decorar as estantes. Por exemplo, para que se perceba como algumas circunstâncias não nascem do ar. Não é preciso dizer «ao que venho», pois qualquer pessoa que leia do princípio ao fim com atenção perceberá. A verdade é que alguns silêncios de uma boa parte das pessoas de esquerda em relação a Cuba se baseiam na sua resistência a aceitarem que o mito cubano não passa disso...

Quanto à posição sobre a ditadura castrista, seguindo os links finais do post (e há dezenas de outros por aí espalhados, por mim assinados), perceberá rapidamente qual é ela. Simplesmente não me apeteceu repetir o que outros já aqui disseram de forma substancial.

Tem um pequeno problema suplementar a sua intervenção em estilo curto: primeiro queixa-se de isto ser "history digest" (claro que é), e "para ignorantes" (aqui ofende os leitores que ouvem isto pela primeira vez, e haverá alguns...). Está no seu direito, claro. Mas ao mesmo tempo tal «crítica» pressupõe querer mais, o que contradiz a recusa da tal de "professor-doutorice". Ora bolas.

Anónimo disse...

Bom Dia ! É um bom texto de Blogue, embora use daquele vício impenitente relançado por M.M. Carrilho nos seus(dele) velhos golden tempos: apresentar doze-12-doze citações de Derrida, Rorty e Wittgenstein numa recensão sobre um livro do EP Coelho...de 30 linhas.

O que eu queria dizer, embora conhecendo o autor, Vergílio De Lemos,poeta e jornalista free-lancer e na Radio France Inter-Paris, hoje reformado,é chamar a atenção para o facto: que ele(V.de Lemos foi vitima de um atentado ou desastre armadilhado em Cuba nos finais dos anos 60. Não sei se ia em Reportagem ou em viagem turistica-´militante. O que sei, é que ele ficou mesmo com problemas numa perna para sempre...Convém lembrar, por outro lado, que Régis Debray tem assumido ao longo dos tempos uma metamorfose cultural e política extravagante e polémica,sendo hoje um ensaista-filósofo ligado à Médiologia depois de ter sido um dos fundadores do Republicanismo democrático, de tintas nacionalistas, imenso albergue espanhol com ramificações na direita gaullista e nos ex-maos recauchutados por F. Mitterrand, tipo J-P.Chevènement. Niet

Anónimo disse...

O que as idólatras do regime cubano deveriam perceber, mormente quando têm uma certa cultura (a cultura não é de esquerda nem de direita, assim como a liberdade de pensamento):
Se há prisioneiros de consciência em Cuba, esta não é uma pátria do socialismo, pois este é incompatível com isso. Se a esses prisioneiros lhes é sonegado um estatudo de presos políticos, também isso nos soa familiar, aos que conhecem a história da resistência ao fascismo, pois muitos resistentes (e lembro aqui os que eram treinados pelos cubanos, também) não eram considerados presos políticos.
Conclusão, chamem o que quiserem a Cuba, mas não é pátria de revolução, não é pátria de socialismo, não é por se auto-designar assim que uma coisa o é!
Vejam esta entrevista de um neto do Che:
http://www.ainfos.ca/06/aug/ainfos00091.html
Manuel Baptista

Rui Bebiano disse...

100% de acordo com o que escreveu Manuel Baptista. Nada tenho a acrescentar.

Quanto ao que escreve, Niet, compreendo a crítica do "citacionismo" (a verdade é que não gosto de me apropriar das ideias dos outros como se fossem minhas). De vez em quando lá tem de ser. Todavia, e não leve a mal, ela não deixa de ser um pouco patusca vinda de quem vem... Bom domingo.

Anónimo disse...

R. Bebiano: Regresso da Montanha agora mesmo. Tem toda a razão na crítica que me endereça! Como diria Hegel, sou um pouco a vitima das minhas antinomias.Mas existe o desirévolution, não é? Niet