Meu caro Bento,
leitor impenitente dos teus escritos, com os quais aprendo sempre e que são sempre para mim uma interpelação exigindo-me que pense mais responsável e livremente, gostaria de deixar aqui uma ou duas notas de leitura sobre a tua crónica A Ressurreição da Igreja, no Público deste Domingo de Páscoa (4 de Abril de 2010), dando conta do que julgo ter aprendido com ele e das interrogações que me leva a colocar-te.
Começarei por sublinhar o uso muito peculiar e paradoxal que fazes do termo "hierarquia" e o modo que propões de conceber e, logo transformar, a coisa-mesma assim designada. Tu escreves, com efeito: "a hierarquia não é a Igreja. A hierarquia é um serviço indispensável à Igreja, na Igreja de todos. Por outro lado, o Papa é o bispo de Roma, não é o bispo de todas as dioceses católicas. A responsabilidade pela vida da Igreja, vida do Espírito de Cristo, é colegial. A 'papolatria' é uma doença que faz mal ao Papa, aos bispos, aos padres e, sobretudo, ao povo cristão". E isto que escreves leva-me a perguntar se o teu entendimento da "hierarquia" não será, bem vistas as coisas, uma maneira fundamentalmente anti-hierárquica de conceber o governo e o seu exercício. Das tuas palavras resulta uma imagem da Igreja ou uma proposta de transformação da Igreja numa comunidade de crentes auto-governada, sem intérpretes privilegiados por natureza, sem funções que ponham os magistrados num estatuto superior ao daqueles que servem ou os subtraiam à autoridade instituinte dos mesmos.
Assim, e se te leio bem, embora mantenhas a ideia de uma revelação de origem divina e a afirmação da fé na verdade sobrenatural e racionalmente indemonstrável na mensagem dessa revelação, dessacralizas radicalmente a instituição humana que a interpreta e veicula ou propõe, ao mesmo tempo que lhe negas a legitimidade de qualquer supremacia espiritual ou temporal sobre as restantes instituições da cidade humana. Se a hierarquia se confunde na tua definição com aquilo a que poderíamos chamar as magistraturas indispensáveis à comunidade dos crentes ou com o conjunto dos órgãos do seu autogoverno e se a revelação não autoriza a sacralização, no interior da Igreja, de um poder de administração da verdade e da sua interpretação acima da "Igreja de todos", então, a mesma ordem de ideias vale para que o conjunto da Igreja não deva reivindicar qualquer privilégio no governo da cidade ou pretender transformar esta ou aquela interpretação da revelação em fundamento da lei e das leis conducente à sua imposição através da subordinação ou limitação das deliberações e capacidades de decisão dos membros da cidade humana.
Em última análise, portanto, parece-me que não deverias estar longe de reclamar a destituição política da religião, sem prejuízo, ou antes em defesa, dos plenos direitos dos cidadãos que sejam também crentes. Não vejo que outra coisa possa impedir melhor, ao mesmo tempo que garante a cidadania democrática activa enquanto garante da autonomia da cidade humnana, qualquer desígnio de idolatrização ou "divinização" (decerto blasfema do teu ponto de vista) de qualquer ordem estabelecida, a qual, ainda que no melhor dos casos, só pode ser obra das leis falíveis, convencionais, prevendo o seu próprio questionamento, que reconheçamos como nossa criação histórica e nossa responsabilidade.
***
Se creio que poderemos, apesar das reservas que possas pôr à minha formulação dos termos do debate, chegar a um grau razoável de entendimento sobre este problema - e sem entrar aqui na exposição das razões do meu ateísmo, que se não deixa vencer ou convencer pelo salto da fé que implícito na admissão da revelação -, deixa-me dizer-te que me parece menos feliz, na tua crónica que comecei por citar, o modo como abordas e avalias o chamado "escândalo" dos casos sacerdotais de pedofilia ou, mais rigorosamente, de abuso sexual de menores que têm vindo a ser divulgados.
Peço desculpa de repetir o que escrevi aqui - e tenho repetido noutros lugares a propósito do caso, retomando as posições que de há muito mantenho sobre a questão religiosa que as concepções programáticas autorizadas da Santa Sé levantam em matéria política.
Mas considero, até que me demonstres o contrário, que "aquilo que aqui está em causa e compromete a hierarquia da Igreja e o seu monarca é a adopção, por razões de Estado, de uma atitude de encobrimento activo de crimes, que são também faltas graves aos olhos da doutrina romana, e dos seus autores, que foram mantidos nos seus postos e protegidos para além de todos os limites razoáveis. A hierarquia revelou bem assim que é um poder discricionário - de soberano ad legibus solutus - aquele que reclama e se julga autorizada a usar. O 'esplendor da verdade' de que se afirma portadora em termos superiores e exclusivos legitima pois, na razão de Estado ou de Igreja da hierarquia, a suspensão da validade das leis cuja imposição a Santa Sé defende e consagra.
O que está aqui em jogo é uma concepção política que faz primar os direitos superiores, de origem divina, consagrados por um bem supremo, sobre as leis civilmente instituídas na cidade humana.
Mas considero, até que me demonstres o contrário, que "aquilo que aqui está em causa e compromete a hierarquia da Igreja e o seu monarca é a adopção, por razões de Estado, de uma atitude de encobrimento activo de crimes, que são também faltas graves aos olhos da doutrina romana, e dos seus autores, que foram mantidos nos seus postos e protegidos para além de todos os limites razoáveis. A hierarquia revelou bem assim que é um poder discricionário - de soberano ad legibus solutus - aquele que reclama e se julga autorizada a usar. O 'esplendor da verdade' de que se afirma portadora em termos superiores e exclusivos legitima pois, na razão de Estado ou de Igreja da hierarquia, a suspensão da validade das leis cuja imposição a Santa Sé defende e consagra.
O que está aqui em jogo é uma concepção política que faz primar os direitos superiores, de origem divina, consagrados por um bem supremo, sobre as leis civilmente instituídas na cidade humana.
Trata-se da concepção que define o paradigma mais activo do imaginário hierárquico e antidemocrático: aos detentores da verdade revelada, os conhecedores científicos das leis da natureza, da história ou da racionalidade económica, compete ditar a lei da cidade, e impô-la à multidão dos demais, pela persuasão ou pela violência. E acresce que nem mesmo essa lei que ditam - a Igreja ou o Partido - os vincula, porque, para todos os efeitos práticos, o seu poder disso os dispensa, ou lhes permite ajuizar da oportunidade da aplicação dos seus próprios preceitos, em função dos interesses superiores da ordem estabelecida ou a estabelecer e da salvaguarda da autoridade dos seus agentes".
***
Uma nota final. Escreves tu: "Não vale a pena clamar contra a evidente parcialidade com que este assunto tem sido tratado nos meios de comunicação. Continuam a ignorar as muitas instituições de acolhimento de crianças vítimas de violações nas próprias famílias e nos mais diversos grupos sociais". Mas, ainda que te conceda a parcialidade de alguns ataques, o despropósito de outros, e, evidentemente, reconheça a existência das "instituições de acolhimento de crianças", etc., essa parcialidade parece-me bem menos grave do que o sofisma demagógico em que a hierarquia incorre ao declarar-se perseguida pelos que contestam os seus direitos de casta a uma jurisdição especial, gémea daquela que os partidos comunistas nos regimes do "socialismo real" e os seus satélites locais reclamavam para os seus responsáveis, invocando a sua qualidade de "sóis" deste mundo, como Ratzinger se reclama do "esplendor da verdade" deste e do outro, condenando ao ranger de dentes das trevas exteiores o que é para ele a impiedade intrínseca da democracia.
Com o abraço fraternal de sempre deste teu amigo
miguel
27 comentários:
Miguel,
Ainda não li o Público, voltarei provavelmente aqui mais tarde.
Mas pode ser que me engane muito ou a primeira parte do teu texto é um ENORME esforço de boa vontade na interpretação do que julgo ser o actual pensamento do frei Bento, pelo que tenho vindo a ler dele (cada vez mais em diagonal, devo confessá-lo...)
Pois, Miguel, entretanto já li o (muito bom) texto do Frei Bento.
Simplesmente o que se passa, na minha opinião, é que ele gostaria que a hierarquia da Igreja, ao seu nível máximo, se tivesse mantido fiel ao Vaticano II mas tal não aconteceu e, nessa medida, interpreto o ponto 3. do que escreve, em que te baseias na primeira parte do teu post, como pouco mais do que wishful thinking.
Foi aliás isso que quis dizer no meu post
Roma, cidade fechada,
ao tentar caracterizar o o que se passou a partir de meados da década de 60:
«A estrutura hierárquica desenha e defende uma estratégia rígida, mesmo que disfarçada, que é condição de sobrevivência e de conservação do poder. Percebeu-o há quarenta anos e não vai ceder. (…)
Quanto à democracia, ela será construída e a humanidade progredirá apesar do Vaticano. Mas não deve, de modo algum, contar-se com o seu contributo positivo. Muito pelo contrário.»
Sim, Joana, também eu sou céptico quanto à democratização da Igreja. Mas penso que é importante distinguirmos as diferentes posições que continuam dentro dela e que temos de nos relacionar em termos políticos diferentes com quem tem posições que aceitam a autonomia da política e a sua secularização radical e com quem defende e pratica as concepções que critico no meu post.
Dito isto, e por descargo de consciência, reitero aqui o que já disse de passagem no que antes escrevi: o ateísmo que assumo manter-se-ia hoje ainda que a Igreja se democratizasse, aceitando a destituição política da fé e da revelação que a democracia implica. Mas não me parece que este momento seja o mais adequado para abrirmos um debate sobre essa questão.
Um abraço para ti
miguel (sp)
Pretender ensinar a mais antiga organização social voluntária da civilização a sobreviver é ambicioso. Como católico aprecio a boa intenção.
Mas pergunto-me, se é a propósito da pedofilia, Será esta menor em países democráticos do que em não-democrático?
Ainda assim é preciso fazer notar que o Vaticano é uma espécie de monarquia electiva.
Para quem acha a estrutura rigidamente hierárquica é preciso fazer notar que nos concílios (quem têm lugar em alturas de crise e mudança) a estrutura fica muito horizontal, porque todos ficam com igual voto de matéria- todos são bispos, os cardeais opinam em igualdade com os bispos.
Existe assim, a conjugação de uma estrutura vertical rígida para a gestão corrente e uma estrutura horizontal evocada de tempos a tempos para permitir a mudança.
Como digo, a análise puramente organizacional da ICAR merecia análise cuidada e menos ideológica.
Por exemplo, nunca vejo referido o acto da confissão analisado como verdadeiro acto de psicanálise igualitarista para o povo ou poderosos,muito antes de Freud. Repare-se como o dever de sigilo absoluto tornou possível esse acto de psicanálise de exposição dos piores actos ou pensamentos.
Mas não, no estudo social ou antropológicos da ICAR é só se vêm análises nada objectivos. Nada que se compare a estudos neutrais fascinados com o primitivismo de tribos em lugares recônditos.
Caro Anónimo CN,
a confusão que reina na sua ecologia do espírito deve ser grande e receio que menos benéfica para a sua saúde e faculdades.
Para começar, não sei o que é que você entende por "a mais antiga organização social voluntária da civilização", e desconfio que você não o sabe melhor do que eu.
Depois, a conversa sobre a democracia e a pedofilia é absolutamente confrangedora. O que é que pretende dizer com ela? Que devemos ter cuidado com a democracia ou limitá-la uma vez que ela poderá acarretar a expansão da pedofilia? Ou que o combate à pedofilia implica e justifica limitações da democracia? Como e porquê? Não será antes evidente que são as prerrogativas de uma organização hierárquica, com os seus arcanos, as suas zonas de acesso reservado, os seus mecanismos de controle e filtragem da informação, que podem servir para o encobrimento das práticas a que você se refere?
Onde é que você aprendeu que uma monarquia absoluta electiva, coroando uma hierarquia colegial oligárquica, equivale à igualdade democrática? O facto de todos os bispos votarem em certas assembleias anula o facto de serem eles próprios nomeados pelo Papa e não eleitos pelos fiéis, em vez de serem mandatados por estes ou seus delegados responsáveis perante eles?
O que é que há de democrático ou sequer racional na ideia de que o Papa e a hierarquia são detentores da interpretação vinculativa de um lei natural (e naturaliter christiana) a cuja formulação as leis da cidade devem submeter-se sem discussão?
Mas creio que acerca de todos estes aspectos o post da minha camarada Joana Lopes,
"Roma, cidade fechada" diz o essencial ao concluir:
«Quanto à democracia, ela será construída e a humanidade progredirá apesar do Vaticano. Mas não deve, de modo algum, contar-se com o seu contributo positivo. Muito pelo contrário».
Saudações laicas
msp
CN, o Miguel acaba de responder a algumas questões que lhe poria, mas retomo este seu parágrafo.
«Para quem acha a estrutura rigidamente hierárquica é preciso fazer notar que nos concílios (quem têm lugar em alturas de crise e mudança) a estrutura fica muito horizontal, porque todos ficam com igual voto de matéria - todos são bispos, os cardeais opinam em igualdade com os bispos.
Existe assim, a conjugação de uma estrutura vertical rígida para a gestão corrente e uma estrutura horizontal evocada de tempos a tempos para permitir a mudança.»
Primeiro: o último Concílio Ecuménico acabou há 45 anos, o penúltimo há 140, o anterior há 447… Convirá que, mesmo aceitando o que diz, a «estrutura horizontal» funciona muito, muito raramente. Resta portanto a hierárquica, pura e dura – não propícia a mudança, para retomar as suas próprias palavras.
Segundo, mesmo que num Concílio todos votem por igual, resta ainda que o que decidem venha a ser cumprido, o que, como deve saber melhor do que eu já que se diz católico, não aconteceu, em muitos aspectos, depois do Vaticano II. Quem supervisiona este cumprimento? Não havendo nenhuma «autoridade» humana acima do papa, resta a divina e não consta que o Espírito Santo tenha grande vocação para juiz.
Caro Miguel Serras Pereira disse...
"a mais antiga organização social voluntária da civilização"
Se me quiser apontar outra organização (que possa assim ser considerar do ponto de vista da teoria de organizações) que se mantém como tal há tanto sou todo ouvidos.
A durabilidade é obviamente um critério de avaliação se uma organização como organização está bem estruturada ou mal estruturada comparada com outras (associações, empresas, etc). Uma má organização dura pouco, as organizações para se afirmarem têm de passar a prova do tempo.
(Quanto a democracia, para si a Verdade nasce da maioria? A ciência, a análise social? Claro que não. Coloca-se um problema e vota-se?)
Os críticos da ICAR querem transformar o catolicismo em mais um credo protestante. Mas para isso as pessoas já pode ser protestantes. São livres de abandonar o catolicismo. Mas não acaso, por exemplo o protestantismo anglicano está em maior crise que a ICAR, havendo movimentações para se juntar à ICAR:
Um pouco sem sentido é afirmar-se coisas como:
- os padres são obrigados a não casarem
- os bispos e Papa deviam ser eleitos
Já agora, os presentes casos de pedofilia representam na verdade uma oportunidade de ortodoxia na aceitação de padres, não em outro sentido. Os credos protestantes onde se casa, têm bastante mais casos de pedofilia que a ICAR.
Quanto à questão da verticalidade conjugada com horizontalidade ela é crucial para explicar a tal durabilidade. Uma organização para se manter tem de ser estável na sua ordem interna e externa mas tem também de ter capacidade muito temperada de mudança em situações especiais. Umas organizações morrem por se adaptarem demasiado, acabando por se destruir, outras por a rigidez ser levada a extremos auto-destrutivos. A ICAR mais do que qualquer outra tem passado a prova do tempo.
"O que é que há de democrático ou sequer racional na ideia de que o Papa e a hierarquia são detentores da interpretação vinculativa de um lei natural "
O que há de racional em pensar que a verdade é algo que o voto resolve?
Joana Lopes pergunta "Quem supervisiona este cumprimento? "
A mais antiga questão em ciência política é: "Quis custodiet ipsos custodes?"
Diga-me, a democracia resolve isso?
Quem nos guarda contra a maioria?
Os monárquicos têm um excelente argumento ao indicar que apenas um soberano independente (e educado para essa função) da votação pode equilibrar um sistema dependente de maiorias noutras suas partes. Isto na teoria de Estados.
Quanto a organizações, estas diferem nos Estados porque em última análise existe direito e mecanismo de secessão, "sair de". Com este direito, a suposta via da democracia interna não é necessária.
Não se esforce muito, Se a ICAR fosse democrática (eleitos por fieis) em pouco tempo deixava de existir.
Mas repare, não estou a por de parte a discussão interna na ICAR por fieis e as suas organizações. Se existe coisa que a ICAR tem é diversidade de organizações (ordens, etc) internas em concorrência.
Em termos populares, os fieis costumam queixar-se dos maus padres, dos problemas da paróquia, etc.
CN,
Primeiro, a democracia resolve melhor do que qualquer outro sistema. Segundo, boas ou más, existem instituições internacionais que condicionam minimamente o seu funcionamento, o que não é o caso com a ICAR.
Diz: «Se a ICAR fosse democrática (eleitos por fieis) em pouco tempo deixava de existir.» Quase de certeza, o que para mim seria um motivo de alegria, tal como me regozijei com a implosão da URSS e cito-me (no post já várias vezes referenciado nesta C. de Comentários):
«A grande diferença em relação ao que se passou muito mais tarde numa outra pirâmide, a da União Soviética, foi que a Igreja resistiu quando percebeu que estava ameaçada. Durante o Concílio, também ela arriscou uma glasnost, uma abertura à sua maneira. Iniciou então um tímido aggiornamento, mas travou-o a tempo de não deixar que ele se transformasse em perestroika.»
"Quase de certeza, o que para mim seria um motivo de alegria, tal como me regozijei com a implosão da URSS e cito-me (no post já várias vezes "
Lamento dizer-lhe mas isto é ridículo.
Como comparar a ICAR, cuja obediência é voluntária e que vive de doações, com um Estado totalitário? E mesmo que se compare com um Estado democrático a comparação é descabida-
Mesmo um Estado democrático exerce compulsão coerciva com ameaça de prisão e arresto de bens se não cumprir-se com o dízimo estatista e outras obrigações.
Comparar a unidade organizativa de um Estado que exerce o monopólio da violência num dado território (definição exacta de um Estado) com a de uma organização social voluntária é viver num universo paralelo completamente irrealista.
"Primeiro, a democracia resolve melhor do que qualquer outro sistema. "
Bem, curiosamente muitos impérios foram democrático no seu tempo (Atenas, Roma, Britânicos, os EUA).
"Segundo, boas ou más, existem instituições internacionais que condicionam minimamente o seu funcionamento, o que não é o caso com a ICAR. "
As instituições internacionais são de participação voluntária, o que em termos internacionais significa que o que temos é uma situação de anarquia internacional. Talvez você defenda um Estado Mundial com eleições mundiais compulsório, proibindo todo o independentismo.
Caríssimo MS Pereira: A tua magnífica e empolgante coragem em tentar discutir o Cristianismo- na ideologia prática - quase que desafia a diatibre de M. Bakounine que nos exorta-no empolgante prêambulo do Império Knouto-Germânico- a tudo realizar contra o "flagelo social" da Igreja e do Estado. Essa dupla instituinte de tudo se serviu para inventara a fé " absurda, metafisica e teológica ",justamente, para fazer passar os interesses políticos e económicos da" passagem da escravatura brutal para a legal"...
" (...) se os padres, os videntes, os aristocratas e os burgueses- dos velhos e dos novos tempos-tentaram acreditar sinceramente na Fé, não deixaram de ser mentirosos... Não podemos acreditar, com efeito, nem admitir que eles acreditaram em cada tese absurda que ia constituindo a fé e a política. Não falo da época onde, segundo as palavras de Cícero, " dois videntes não conseguiam olhar-se olhos nos olhos sem se rirem ". Depois, mesmo no tempo da ignorância e da superstição generalizada, é dificil de supôr que os inventores dos milagres quotidianos conseguissem acreditar na sua realidade.Podemos dizer o mesmo da política, que podemos resumir desta forma: " É preciso subjugar e espoliar o povo de tal maneira para que ele não consiga exprimir muito alto o seu protesto,de forma a que não se esqueça de se submeter e não tenha tempo pra pensar na resistência e na revolta ".
Castoriadis, como sabes, tem umas teses sobre a ètica e as Religiões esparsas- sobretudo no volume " A Ascensão da Insignificância "-onde diz, preto no branco, que a "ideia de uma ética cristã é um absurdo. Não se lhe pode colocar nenhuma interrogação; a resposta a qualquer pergunta concebível está integralmente contida no Evangelho.(...) o cristianismo nunca foi cristão, a não ser talvez, durante um curto periodo inicial, tornando-se rapidamente numa Igreja instituída com a consequente duplicidade que isso acarreta ". Niet
Eu por exemplo acho delicioso a acusação de que a ICAR é um "Estado dentro de um Estado".
Estado é um monopólio territorial da violência. É esta capacidade que o define como Estado. Se assim não fosse, Estado podia ser uma associação voluntária. Que não é. Diria que se poderia aproximar se todas as Constituições expressassem um processo pacífico de exercer a qualquer momento o direito de secessão. Tal como alguém se pode afastar da Igreja.
Blogoscopia:A Zazie- e indirecta e subtilmente o MS Pereira a isso já aludiu- foi a única bloggeur a não criminalizar a-priori a pedofilia dos padres.
Por outro lado, a Zazie foi quase linchada moralmente no Blasfémias,ontem. E disse que é objectivamente censurada, quer nos blogues de Direita, quer nos de Esquerda. Endereçou um elogio ao Carlos Vidal, há tempos, que nunca foi publicado no Cinco Dias.
Por outro lado, o CN- iniciais de Carlos Novais- é co-associado do blogue Vento Sueste e tem um site sobre a Causa Liberal. Niet
CN,
não, a democracia não decreta a verdade por votação (e, de resto, o voto não é o único critério da democracia: a tiragem à sorte, não da verdade, mas de parte das magistraturas ou cargos públicos, não o é menos; a rotatividade, igualmente, etc., etc.). Mas é o regime que melhor garante que o debate em torno da verdade, baseado na exigência de dar conta e razão dos argumentos apresentados, permaneça em aberto e que esta ou aquela versão decretada pelos governantes, hierarquias sacerdotais ou partidárias, etc. etc., seja imposta a todos no interesse desses que os governam.
A coroa ou a hierarquia oligárquica que hoje nos governa tem interesses particulares e pressupõe a distinção permanente e estrutural entre governantes e governados. O exercício igualitariamente participado do poder político pelo conjunto dos cidadãos organizados e pelos magistrados por eles mandatados precisamente porque assenta nessa participação de cada um no poder político que o governa impede que uma classe ou camada particular viva de governar e administrar aqueles que reduz à condição menorizada de massa dos governados.
A democracia não é a ciência, mas a reivindicação de liberdade que cria as condições da primeira é também a melhor garantia do livre-exame na segunda.
É curioso que você invoque o problema da necessidade de nos guardarmos dos nosso guardas ou nos protegermos dos nossos protectores para atacar a democracia e em defesa de um modelo que, a ser aplicado na sua pureza, implica a subordinação sem recurso do rebanho (dos governados) à condução do pastor (governantes, papas, partidos de vanguarda, grandes guias "carismáticos"). Tudo o que se pode dizer a este respeito é que, se a participação dos cidadãos no poder que os defende e protege não representa uma garantia absoluta - na medida em que, por muito que uma constituição proíba a democracia de se anular a si própria, há sempre a possibilidade de os cidadãos se despojarem dessa condição e consentirem "livremente" na servidão dos súbditos -, essa participação governante, pelo menos enquanto for exercida e reafirmada, torna a protecção e a defesa, não prerrogativa de uma hierarquia ou camada particular, mas auto-protecção e auto-defesa colectivas das condições da autonomia de todos e de cada um. Neste sentido preciso, a afirmação da necessidade, para sermos livres e iguais, de nos garantirmos contra os nossos defensores é um dos mais poderosos e fundamentados argumentos da democracia.
Invocar a persistência da Igreja de Roma como argumento da sua bondade é pouco mais ou menos a mesma coisa que justificar a bondade da pena de morte, da tortura, da escravatura, etc., etc., pela longevidade das práticas que as alimentaram e alimentam. Ou como dizer que o crime de sangue, por exemplo, é mais adaptativo do que a ICAR por ser mais antigo e trans-histórico do que ela. Reflecte, de resto, um materialismo grosseiro e qualquer coisa como um "pecado contra o espírito".
Quanto às suas outras digressões sobre o celibato dos padres e as correlações estatísticas entre ele - ou o seu contrário - e a pedofilia interessam-me muito pouco ou nada têm a ver com os termos da questão das relações entre democracia e religião, ou entre a doutrina e a prática da hierarquia romana, por um lado, e o projecto democrático de afirmação e extensão da autonomia e da liberdade e responsabilidade da criação humanas, por outro. Limito-me a assinalar que os católicos mais ratzingerianos tendem a apresentar a este respeito uma tese bastante audaciosa, segundo a qual a melhor garantia contra as tentações pedófilas seria o celibato, porque, ao que dizem, as práticas pedófilas são mais frequentes entre os homossexuais e entre os sacerdotes casados de outras igrejas do que entre os padres católicos com voto de castidade. Mas é uma tese que obviamente prefiro não comentar.
Um post que pode ter interesse para a questão da democracia enquanto a melhor maneira de chegar à verdade:
http://aguiarconraria.blogsome.com/2009/03/22/varias-cabecas-pensam-melhor-do-que-uma-mesmo-que-seja-a-cabeca-de-vital-moreira/
MSP - "É curioso que você invoque o problema da necessidade de nos guardarmos dos nosso guardas ou nos protegermos dos nossos protectores para atacar a democracia e em defesa de um modelo que, a ser aplicado na sua pureza, implica a subordinação sem recurso do rebanho (dos governados) à condução do pastor (governantes, papas, partidos de vanguarda, grandes guias "carismáticos")."
Bem, no caso de uma organização (mais ou menos) voluntária, como a ICAR, há sempre um recurso - deixar a Igreja (e eventualmente criar uma nova ao lado).
CN - "Os credos protestantes onde se casa, têm bastante mais casos de pedofilia que a ICAR."
Pelo (pouco) que li, não: a percentagem de pedófilos parece ser a mesma no clero nas várias confissões religiosas, mas na ICAR haverá um rácio muito elevado de abusados por abusador.
"Invocar a persistência da Igreja de Roma como argumento da sua bondade "
Não quis fazê-lo como "bondade", mas como qualidade de organização, no sentido em que essa qualidade organização se poderá medir pela usa longevidade. Pura teoria de organizações se o quiser.
Quanto à questão da democracia política, não a estou a por em causa, embora eu insista que uma democracia para ser "livre" tem de conceder o liberdade de secessão/independentismo às suas partes sob pena de poder ser considerada (como o é conceptualmente) uma imposição maioritária.
O que não acho nada relevante, é olhar para organizações sociais das quais se podem entrar e sair, e falar no grau de "democraticidade" em analogia à democracia política.
Ou seja, uma organização não é mais bondosa por ser mais democrática ou menos. É mais ou menos "bondosa" por ser mais ou menos "bondosa".
Não é a "democraticidade" que o determina.
"ICAR haverá um rácio muito elevado de abusados por abusador."
Suponho que isso é proporcional ao extremo sucesso comparativo da ICAR no domínio da gestão da educação e saúde, comparando com outras religiões.
Assim, um elemento criminoso e doente nesse meio terá de facto maior capacidade de o cometer em maior número. Como é que foi na Casa Pia?
Miguel Serras Pereira "para sermos livres e iguais, de nos garantirmos contra os nossos defensores é um dos mais poderosos e fundamentados argumentos da democracia."
A democracia é um mero instrumento processual de tomar decisões colectivas que um conjunto de pessoas aceitam tomar colectivamente (e é muito importante este "aceitam", porque se não "aceitarem" devem ter o direito de deixarem de fazer parte desse "colectivo de decisão"), não um fim em si mesmo.
Mas enfim, eu percebo que quando se fala em "democracia" se quer ser muito mais abrangente de que o mero processo de tomar decisões com consequências compulsivas para um dado conjunto de pessoas, por voto universal.
Mas como disse, não está em causa nesta discussão a democracia política, mas a de fazer disso uma medida de "bondade" para organizações.
CN,
1. o critério da longevidade de uma organização não prova a sua superioridade em termos de eficácia instrumental; mas, sobretudo, o critério é absolutamente "ímpio" - ou, se quiser, ignora totalmente as questões axiológicas da discussão em curso.
2. Você escreve: "O que não acho nada relevante, é olhar para organizações sociais das quais se podem entrar e sair, e falar no grau de "democraticidade" em analogia à democracia política". Aqui há duas séries de objecções imediatas ao seu argumento:
- só muito recentemente e à força a Igreja de Roma deixou (incompletamente, pois ainda há um Estado no Vaticano, etc) de ser em boa parte do mundo uma autoridade política efectiva, garantida e assistida pelo poder de Estado, e beneficiando do apoio do braço secular para impor a sua supremacia sobre todos, em troca da legitimação a que procedia da ordem estabelecida.
- a Igreja continuou a ser portadora de uma concepção da sociedade e da política legítimas e a aspirar, ultimamente de modo cada vez mais declarado, a definir as grandes linhas do poder legítimo. O seu modelo de organização não tem politicamente uma relevância puramente interna. A sua doutrina propõe-se como doutrina constitucional, e essa doutrina constitucional, veiculada por várias encíclicas e outros documentos oficiais, é radicalmente antidemocrática.
3. A construção de uma sociedade democrática, instituindo o autogoverno colectivo e a afirmação da autonomia individual, implica a destituição política de qualquer fundamento das leis humanas numa revelação ou qualquer outra definição da verdade que prime sobre a deliberação e a decisão dos cidadãos implicados.
"o critério da longevidade de uma organização não prova a sua superioridade em termos de eficácia instrumental;"
Bem, não se consegue então perceber qual seja o critério.
"de ser em boa parte do mundo uma autoridade política efectiva, garantida e assistida pelo poder de Estado,"
Pois, o que falar então do poder do Estado para impor o poder do Estado.
Comparemos a ICAR com outras religiões, no mundo protestante europeu, as religiões são nacionais altamente associadas ao seu Estado, esse foi o resultado da Reforma. No mundo asiático, religião e Estado, como na China era praticamente a mesma coisa. Mo Islão é o que sabe. Israel...podemos ainda falar do tribalismo.
Comparando com isso, a ICAR é única ao fornecer uma legitimação alternativa - e que foi essencial para a formação da Europa.
Repare, a ICAR desde sempre é universalista e se quiser internacionalista. Um organização supra-nacional única, com uma língua comum (latim) e um direito. A ICAR na verdade foi uma espécie de ONU da civilização europeia durante séculos, Quando deixou de ser, foi a guerra da reforma umas vezes e o anti-clericalismo outras que expropriou propriedade honesta (muito mais que a do poder secular) da Igreja (doada), mosteiros, conventos, os locais onde os monges salvaram e copiaram, o que sobrou dos textos clássico da Grécia e Roma, criam as Universidades (os próprios Papas protegiam concedendo privilégios de independência do poder político local) que eram internacionalistas - tudo na Igreja é mais do que a nação ou etnia.
Se é verdade que rivalizava com os Estados não era por ter o poder da violência do Estados. Rivalizar foi-o num melhor sentido. Foi no sentido de ser um contrapoder mútuo ao poder secular. Parte da motivação das guerras protestantes foi os Príncipes quererem roubar propriedade da Igreja e terem de deixar de se incomodar com um poder extra-nacional que os impedia de fazer o que quiserem. E com isso nacionalizaram/estatizaram a Igreja passando esta a fazer parte do próprio poder político. Só não vê isso quem não quer.
A civilização europeia deve muito quer à atomização política das soberanias (a Alemanha pré-Napoleão era constituída por 300 entidades políticas independentes) e o facto de poder secular ter de viver com a ICAR, existindo assim um equilíbrio de rivalidade de legitimidade que é único da história do resto do planeta.
" A sua doutrina propõe-se como doutrina constitucional, e essa doutrina constitucional, veiculada por várias encíclicas e outros documentos oficiais, é radicalmente antidemocrática."
Sim, antidemocrática, e isso é relevante para quê?Os Bispos deviam ser eleitos, é isso, e o Papa? Por quem, uma eleição mundial? Existiriam partidos e depois votava-se?
Quanto a democraticidade, eu insisto que se existe realidade na ICAR ausente nas outras organizações religiosas é precisamente a diversidade de concorrência interna de organização (as ordens, as organizações, muitas vezes rivalizando-se, ou especializando-se, umas na educação, outras aos pobres indigentes, outras na saúde, etc).E ainda falta as muitas organização de católicos não clericais, onde estão assentes clericais, e que permitem a troca de informação e influência.
Essa obsessão pelo voto esconde a riqueza das relações humanas. É uma obsessão da modernidade.
PS: chamo a atenção que não estou a falar de democracia política, esta como digo tem um escape - tem de permitir o pleno direito de secessão. Se assim não for será bem mais coerciva do que pode ser a ICAR.
CN,
a sua argumentação histórica é inexacta e confusa. Mistura meias-verdades com distorções sumárias. Não sou capaz de a discutir nos termos em que a formula. Seria uma tarefa demoradíssima e pouco pertinente nas circunstâncias.
Mas quando eu escrevi: " A sua doutrina propõe-se como doutrina constitucional, e essa doutrina constitucional, veiculada por várias encíclicas e outros documentos oficiais, é radicalmente antidemocrática", referia-me à ordem política temporal que a Igreja de Roma defende para a sociedade exterior.
Também já lhe disse que a democracia não é o voto nem se deixa ressumir por essa aritmética. É o regime que atribui igualitariamente aos cidadãos a tarefa de deliberarem e decidirem livre e responsavelmente das leis pela quais entendam governar-se.
Enfim, poderia continuar, mas creio que, de momento, nenhuma das nossas duas posições se tornaria por via deste debate muito mais explícita.
E, até mais ver, é tudo.
Saudações republicanas
msp
P.S. Recomendo-lhe desinteressadamente, pois não sou homem de fé, que leia bem o que escreveu o Frei Bento. Apesar das críticas que lhe dirijo em matéria de balanço político do "escândalo da pedofilia", a sua posição é bem mais democrática e menos instrumentalista do que a sua, ou a do cronista do DN que dá pelo nome de João César das Neves (excelentemente desmontada aqui mesmo pela Joana Lopes, no post intitulado "Difamação, diz ele".
"É o regime que atribui igualitariamente aos cidadãos a tarefa de deliberarem e decidirem livre e responsavelmente das leis pela quais entendam governar-se. "
Agora podia abrir uma discussão sobre o quanto é irracional achar-se que o Direito é algo que emana de decisão maioritária, mas ficamos então por aqui.
CN
O que você faz é, com falinhas mansas,defender uma das organizações mais criminosas do mundo...
Manuel Monteiro
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