01/04/10

Um Acólito Surpresa da Guarda Suíça

Tentando compensar a manifesta desorientação de certos defensores da fortaleza romana, eis que, numa operação-relâmpago, um acólito surpresa da Guarda Suíça, em missão de serviço na região portuguesa, acorre aos apelos de cerrar fileiras do Chefe de Estado do Vaticano.
Com efeito, numa crónica intitulada Abriu a Caça aos Padres, a que outra na mesma linha se seguiu hoje no DN, é o "ateu de sempre" Ferreira Fernandes que sai à liça, indignado com a "má-fé dos imbecis", característica de Anselmo Borges e outros, que arriscam a hipótese de uma afinidade electiva entre a moral sexual e a disciplina imposta ao clero por Roma e os comportamentos culminando no abuso perpetrado sobre menores de certos docentes eclesiásticos e outros sacerdotes.
Mais sectário de má-fé do que imbecil inocente, Ferreira Fernandes faz valer que a existência de alguns, mais ou menos numerosos, casos de pedofilia sacerdotal não transformam a Igreja de Roma numa organização pedófila e não comprometem senão os implicados., ao contrário do que quer fazer crer quem, apelando à "caça aos padres", "generaliza à Igreja Católica os abusos sexuais a menores". E passa a citar, à boa maneira dos demagogos, algumas peças mediáticas sensacionalistas que nada têm a ver com o fundo da questão - ao mesmo tempo que silencia tudo o que de substancial e argumentado tem sido escrito, de diferentes pontos de vista críticos, sobre o assunto,  como o artigo de Anselmo Borges já citado, os posts da Joana Lopes e alguns comentários a que deram lugar, outras intervenções blogosféricas como as de João Tunes, ou as que se podem encontrar na carta envida pela Associação Ateísta ao bispo Azevedo - ao para me ficar por estes exemplos.
Porque a verdade é que aquilo que aqui está em causa e compromete a hierarquia da Igreja e o seu monarca é a adopção, por razões de Estado, de uma atitude de encobrimento activo de crimes, que são também faltas graves aos olhos da doutrina romana, e dos seus autores, que foram mantidos nos seus postos e protegidos para além de todos os limites razoáveis. A hierarquia revelou bem assim que é um poder discricionário - de soberano ad legibus solutus - aquele que reclama e se julga autorizada a usar. O "esplendor da verdade" de que se afirma portadora em termos superiores e exclusivos legitima pois, na razão de Estado ou de Igreja da hierarquia, a suspensão da validade das leis cuja imposição a Santa Sé defende e consagra.

O que está aqui em jogo é uma concepção política que faz primar os direitos superiores, de origem divina, consagrados por um bem supremo, sobre as leis civilmente instituídas na cidade humana.
Trata-se da concepção que define o paradigma mais activo do imaginário hierárquico e antidemocrático: aos detentores da verdade revelada, os conhecedores científicos das leis da natureza, da história ou da racionalidade económica, compete ditar a lei da cidade, e impô-la à multidão dos demais, pela persuasão ou pela violência. E acresce que nem mesmo essa lei que ditam - a Igreja ou o Partido - os vincula, porque, para todos os efeitos práticos, o seu poder disso os dispensa, ou lhes permite ajuizar da oportunidade da aplicação dos seus próprios preceitos, em função dos interesses superiores da ordem estabelecida ou a estabelecer e da salvaguarda da autoridade dos seus agentes.
Concluindo, enquanto espero que a discussão continue, para além dos casos individuais dos sacerdotes culpados de práticas pedófilas condenáveis, estão neste caso em causa, ao contrário do que Ferreira Fernandes tenta fazer crer,  a atitude, as concepções e as práticas políticas gerais da Igreja de Roma, a justificação estatutária,  acima das leis comuns e por maioria de razão radicalmente antidemocrática, que reivindica para aquilo a que chama o "esplendor da verdade" e a que Freud chamava a sua "arrogante mentira". Não fora a importância de o termos presente, não valeria tão-pouco perdermos tempo com as crónicas do acólito surpresa de Sua Santidade,  Ferreira Fernandes,  o guarda suíço ateu.

1 comentários:

Joana Lopes disse...

E, como seria de esperar, há vários bloggers que embandeiram em arco o link para o F. Fernandes...