31/10/10

Precariedade: modos de usar


Fala-se agora, com uma frequência que chega a ser suspeita, da questão da precariedade, espécie de flagelo social que se abateu sobre a sociedade, qual praga do Egipto, para a fazer expiar os seus inconfessáveis pecados. Não há economista liberal que não aponte o dedo à “excessiva rigidez” da legislação laboral enquanto refere, com uma lágrima no canto do olho, o infortúnio de uma nova geração de trabalhadores desprovidos de qualquer direito ou protecção legal. Narrativa que se converte frequentemente em trabalhos de imprensa com títulos imaginativos como “A geração dos 600 euros” ou “Jovens a prazo”, nos quais jornalistas surpreendem os seus leitores, informando-os da existência de “trabalhadores independentes” que ocupam há 10 anos o mesmo posto de trabalho.
A precariedade fica assim confortavelmente arrumada: como uma desgraça cujas vítimas são objecto de compaixão; como um problema social a resolver reduzindo direitos laborais que eram inquestionáveis algumas décadas atrás. Embrulhe-se tudo isto em nebulosas alusões ao espírito do tempo, à globalização e à competitividade, para se obter uma operação de engenharia social disfarçada de imperativo categórico, recomendada pelos melhores manuais de gestão. Será possível ouvir, a algumas das pessoas que trabalham neste sentido, afirmações que demonstram o seu profundo conhecimento histórico. Repetirão, tantas vezes quanto for necessário, que a contratação colectiva, a proibição dos despedimentos sem justa causa ou as férias pagas são coisas do passado, antiguidades ou meras recordações de um tempo longínquo. O século XXI, garantem-nos, será algo completamente diferente e extremamente moderno. Os mais atentos não deixarão de encontrar, em tão radiante projecção, um regresso às relações laborais do século XIX, mas agora com banda larga, televisão digital e comunicações móveis à mistura. 

 
Os mais sofisticados sistemas de controlo eletrónico nos locais de trabalho também vão ajudar à festa, para ajudar cada um de nós a ser mais «competitivo», «dinâmico» e «pró-activo», termos que passarão a dispensar as respectivas aspas assim que deixar de existir qualquer diferença entre as palavras e as coisas, quando os «colaboradores» de cada empresas não fizerem outra coisa senão «colaborar». A esta luz, o repetitivo eco do termo «flexibilidade» denuncia a necessidade que as empresas têm de transformar os respectivos trabalhadores numa variável inteiramente dependente do seu ciclo produtivo, numa mercadoria descartável a qualquer momento, num custo a eliminar sempre que a sua margem de lucro se veja ameaçada. Os tempos modernos, lembrava Brecht, não começam de uma vez por todas.

A precariedade não é por isso apenas uma condição laboral ou uma relação contratual atípica. Ela resulta da articulação de variadas técnicas disciplinares e de controlo, sustentadas por outros tantos campos de saber (sociologia do trabalho, psicologia social, marketing), que não dispensam incursões poéticas, nas quais o vocabulário se revela um dispositivo surpreendentemente eficaz na difícil tarefa de transformar a realidade num pormenor e a ficção num facto incontestado. Escreve-se, nos contratos a termo, que as funções a desempenhar serão temporárias ou se devem a um acréscimo extraordinário de trabalho. E contudo, qualquer pessoa se dá conta de que as suas funções são imprescindíveis à actividade da respectiva empresa e o trabalho efectuado é tudo menos extraordinário, antes correspondendo ao funcionamento regular deste ou daquele departamento. Vemo-nos confrontados com uma desconcertante sucessão de inverdades cujas virtudes instrutivas – no que ao Estado de Direito diz respeito – não foram ainda plenamente consideradas. E não parece que haja a este respeito preocupações de monta, uma vez que se contam pelos dedos de uma só mão os juristas capazes de dizer a este respeito alguma coisa de esquerda, democrática ou simplesmente razoável.
A precariedade insinua-se assim no terreno da cultura do capitalismo tardio - enquanto artifício literário capaz de contaminar tanto as formas de comunicação como a ordem jurídica - ao serviço de um programa de recomposição das relações de poder no mercado de trabalho. A assimilação das lições de muitas décadas de lutas de classes dotou a gestão de recursos humanos de um vasto arsenal de instrumentos e técnicas de pacificação, persuasão e intimidação, que o desenvolvimento tecnológico se encarregou de facilitar, ao combinar ferramentas de produção, objectos de lazer e sistemas de controlo numa mesma máquina, que tudo se encarrega de computar . 

Isto revela-se bastante útil, do ponto de vista patronal, tendo em conta o problema substancial que é subordinar uma força de trabalho cada vez mais qualificada e instruída ao processo de acumulação capitalista, num tempo em que qualquer grão de recusa ou resistência se revela capaz de comprometer o conjunto da engrenagem. Mas tem também a desvantagem de familiarizar cada precári@, desde muito cedo, com os meios para suspender esse processo e escapar a essa dominação. Não são necessários muitos conhecimentos, nem uma dose privilegiada de atenção, para intuir os mecanismos do controlo e os respectivos pontos fracos. Trata-se de um terreno de combate permanentemente assinalado por sinais de proibido e regras de comportamento cuja subversão quotidiana dispensa qualquer programa ou estratégia. A velocidade a que se propagam conhecimentos, truques, estratégias e práticas de subtracção à vigilância patronal e aos ritmos de trabalho, são bem o sinal de quão precário é, no fundo, o uso capitalista da precariedade. E todos esses elementos se revelam úteis para distinguir os contornos de uma nova composição da classe trabalhadora, sugerindo uma pergunta pertinente - de que novo ciclo de lutas sociais poderão estes comportamentos ser um prenúncio?
Para responder a semelhante interrogação, tudo o que temos ao nosso dispôr é a crónica dos acontecimentos recentes: uma década de convulsões, levantamentos e lutas sociais, situada pouco depois do fim da história. Primeiro as grandes mobilizações por ocasião de cimeiras internacionais: Seattle (Organização Mundial do Comércio, 1999), Praga (Fundo Monetário Internacinal, 2000), Génova (Reunião do G8, 2001). Depois, durante o Inverno de 2001/2002, o levantamento popular argentino contra as medidas de austeridade impostas pelo governo tornou o país virtualmente ingovernável durante vários meses. Pela mesma altura, a emergência das primeiras mobilizações de precários, com a manifestação organizada em Milão por ocasião do 1º de Maio de 2001, rapidamente se transformou num movimento internacional difuso e extremamente diverso, o Mayday, organizado em Lisboa desde 2007 e agora presente também no Porto e em Coimbra. No Inverno de 2004/2005, a morte de dois jovens da periferia de Paris, na sequência de uma perseguição policial, despoletou uma vaga de motins, pilhagens e destruições, exprimindo a revolta concentrada nos subúrbios franceses e que desde então não deixou de pairar como um espectro por toda a Europa. Um ano depois, a criação em França de um estatuto laboral especificamente jovem e despudoradamente precário, o CPE («contrat première embauche»), deu origem ao primeiro movimento de massas de combate à precariedade, levando à ocupação de vários estabelecimentos de ensino e à realização de gigantescas manifestações de protesto. Quando, em Dezembro de 2008, o assassinato de um adolescente às mãos de um agente de segurança, em Atenas, provocou mais de um mês de confrontos e manifestações nas principais cidades gregas, a precariedade dos jovens era já apontada como uma das justificações mais generalizadamente aceites para a extensão e duração do movimento, que provocou milhões de Euros em prejuízos às grandes seguradoras e retirou ao Estado o controlo sobre diversas áreas do território urbano.
 Outros tantos movimentos, protestos e mobilizações podiam ser acrescentados a esta curta enumeração, sem que a lista corresse o risco de se esgotar. Em todos eles predominou um assinalável grau de horizontalidade e informalidade, uma notável capacidade de auto-organização (que ultrapassou frequentemente as estruturas clássicas de condução do protesto e deu origem a assembleias capazes de impor as suas decisões às lideranças auto-designadas), a predisposição para alternar legalidade e ilegalidade ao sabor das conveniências do momento, a vontade de romper com as formas previsíveis e domesticadas de conflito, a difusa percepção de que era a própria normalidade, enquanto rotina, que se tornava necessário subverter, como condição para que os envolvidos pudessem construir colectivamente a sua própria história. Não terá provavelmente sido fortuito o facto de todos eles se terem exprimido numa linguagem distinta e distante da que costumam utilizar tanto o Estado como as organizações sindicais ou de Esquerda, optando quase instintivamente pela diferenciação face ao terreno da política clássica e elaborando narrativas e discursos próprios, nos quais não deixaram de se fazer ecoar as ressonâncias de lutas e movimentos passados.
Elementos suficientes para sugerir que a precariedade veio transportar para as lutas sociais uma assinalável radicalização, cujo alcance e significado estamos ainda longe de plenamente interpretar. Bastaria passar os olhos pelas páginas dos jornais que noticiaram cada um destes episódios da moderna luta de classes, para constatar a novidade que eles transportam. Os jornalistas raramente sabiam o que escrever a seu respeito, seguindo a custo as dinâmicas mais visíveis e procurando em vão os seus porta-vozes, reivindicações e programas, para quase sempre constatar a inutilidade de semelhantes esforços. Por trás da cortina não se encontrava ninguém e cada um puxava os seus próprios cordelinhos. Tudo isto contribuiu para devolver ao conflito social o carácter imprevisível que lhe é próprio e há décadas parecia subterrado. E sem que alguma vez se tenham deixado de apresentar – a todos os que integraram e agitaram semelhantes movimentos – as diversas hipóteses de conciliação e negociação que se multiplicam, seguramente por intervenção da divina providência, sempre que a revolta paira no ar. «Soluções» para «resolver» o «problema» da precariedade foram tantas como as ocasiões em que o confronto transbordou as margens da representação e da institucionalização, embora duvidoso seja que tenham alcançado o mesmo impacto em termos históricos. E foi semelhante coisa assaz maravilhosa de se ver, pois que há tanto tempo nos habituámos a considerar excelentes aquelas lutas capazes de travar e adiar, mesmo se apenas momentaneamente, uma qualquer patifaria da tenebrosa ofensiva neoliberal, que nos esquecemos já de como lutar, não apenas para reduzir os males, mas verdadeiramente para os esconjurar. De volta parece estar a convicção de que é possível obter vitórias e recuperar ao campo inimigo a iniciativa que sucessivamente nos vem escapando. 
 Muitas destas coisas soam estranhas aos nossos olhos, que acompanham a custo e à distância o que se passa para lá da raia, sem cair na tentação de as imitar. As causas de tão singela tranquilidade social - num país onde tudo é crise, desemprego, pobreza e despudorada exploração - parecem ter substituído as da decadência, no capítulo dos problemas nacionais. Porquem dormem tão tranquilamente os precários de Portugal? Sabemos de fonte segura não se dever tal coisa aos elevados salários que auferem. Ao ver deflagrar os incêndios na Grécia – e não é das suas matas que falamos – a maioria dos observadores virou em seguida o olhar para o país que, na mesma latitude e da mesma dimensão, com alguma naturalidade se deveria seguir. E porém, tudo permanece tranquilo na frente ocidental, onde as autoridades se dão ao luxo de propor a repressão preventiva de «grupos radicais», com os argumentos democráticos que se podem imaginar .
É o atavismo, lembrou-se alguém de dizer. Naturalmente que pesam aqui as práticas informais da economia subterrânea, as redes familiares de apoio e a predisposição para emigrar, que o presente pediu emprestado ao passado mais recente. Por outro lado, os esforços de organização e mobilização de trabalhadores precários têm acusado o peso da tradição política indígena, em que nada costuma acontecer sem que um estado-maior partidário tenha tido oportunidade de se pronunciar sobre o assunto. Entre os que preferem fazer de conta que o problema não se coloca com suficiente gravidade e os que lhe dedicam toda a sua atenção, recursos e assessores, com o nobre propósito de conquistar o lastro social que lhes falta, os precários vêm sendo convocados a participar numa guerra que frequentemente se revela não ser a sua. É claro que existem, aqui e ali, pessoas de boa vontade e determinação, cujos esforços são inteiramente louváveis, pense-se o que se pensar dos resultados obtidos. É possível que, sem elas, tudo isto se encontrasse ainda pior. Mas pesa aqui também o facto – provavelmente decisivo – de estarmos a falar de trabalhadores maioritariamente jovens, que não podem reivindicar para si a experiência de participação num movimento social vitorioso, que os familiarize com os ensinamentos, a disposição e a convicção necessárias a semelhante desafio. O movimento estudantil, um caldo de cultura onde se pode desenvolver e alargar o saudável hábito da revolta e da contestação, não tem acumulado senão derrotas, impasses e hesitações, mesmo lá onde encontrou pela frente adversários inábeis e ofensivas pouco graciosas. Nas escolas secundárias como nas universidades, esta geração encontrou sobretudo a rotina da obediência e o hábito de se esgueirar por entre as gotas da chuva. A compartimentação das lutas, que produz uma separação permanente entre a escola e o trabalho (mesmo quando as duas realidade se revelam inseparáveis), também contribui para esse desconsolo. Falta, nesta costa ocidental da Europa, um imaginário do conflito social capaz de interpelar a multidão que quotidianamente se afadiga em trabalhos a prazo. É o enorme peso dessa inércia que o movimento se vê forçado a superar.
Fala-se agora, com uma frequência que chega a ser suspeita, da questão da precariedade, julgando alguns ver nela uma espécie de novo alento para a Esquerda ou um decisivo argumento a favor do rejuvenescimento dos sindicatos. E inútil será argumentar que de outra coisa se trata. Pois só no meio da tormenta se reconhecem, com a clareza e precisão necessárias para nela nos orientarmos, a altura das ondas e a potência das vagas. A tempestade que se anuncia está ainda em formação. Não se falará de outra coisa quando ela aqui chegar. Os tempos modernos, lembrava Brecht, não começam de uma vez por todas.

Le Monde Diplomatique, Setembro de 2010

2 comentários:

Unknown disse...

queira por favor ler a declaração maldita, documento colectivo da plataforma maldita arquitectura, sobre o mercado laboral em arquitectura

http://malditaarquitectura.blogspot.com/2010/10/declaracao-maldita.html

M. Abrantes disse...

Não li o texto.

Detive-me na brutalidade da foto. Se os 11 homens que lá estão caíssem, outros 11 viriam para os substituir.

Isto tem algo de paradoxal, porque o que parece fácil é encontrar 11 pessoas que não consigam estar ali, e não 11 que consigam lá estar.

A natureza humana também é aquilo que o chicote a deixa ser.