25/10/10

O miserável discurso da miséria resignada e agradecida

O Abominável César das Neves, no seu pior:

Antes de mais é bom perguntar: para quê criticar o sistema? Este é o mundo que temos e ninguém nos vai dar outro. Já era mau quando cá chegámos e continuará a sê-lo depois de partirmos. Não seria mais sensato entretanto contentar-nos com o que temos?
É verdade que o conformismo é um dos vícios mais abominados neste tempo, e todos pensam que estes protestos nos desinstalam, contribuindo para melhorar a situação. Mas será mesmo assim? É indispensável que cada um tente deixar o mundo o melhor possível. Mas isso é uma actividade humilde e atenta, ao nosso nível local, amando e ajudando o próximo. Nada tem que ver com bramar contra males remotos e genéricos, nos quais a nossa influência é nula. Tal lisonjeia o nosso ego, mas não passa de vacuidade ociosa. Quando não é mesmo prejudicial, como as próximas greves, nada resolvendo, pois não há mesmo dinheiro, apenas servem para diminuir o pouco que ainda existe.
Suponhamos, no entanto, que as nossas queixas eram ouvidas. Iriam mesmo melhorar alguma coisa? A verdade é que os problemas globais são muito complexos, e as soluções têm inesperadas consequências nocivas. Basta lembrar como a ingénua confiança dos nossos avós nas virtudes do progresso industrial criou os actuais pesadelos ambientais, ou como o desenvolvimento das regiões pobres, tão ansiosamente desejado, começa a suscitar perigosos desequilíbrios globais que irão assombrar o futuro.
Por outro lado, será a situação assim tão má? Não há dúvida de que, persistindo muitos e graves problemas, o mundo progrediu nos últimos tempos muito mais do que seria de esperar há uma ou duas gerações. A percentagem de pessoas a viver no planeta com menos de dois dólares por dia é ainda de quase 50%. Mas era de 63% em 2002 e de 75% em 1980. Mesmo a actual crise e desemprego, se significam graves sofrimentos para muitos, não têm comparação com a miséria que se vivia por cá há 20 ou 30 anos, em crises menos profundas que esta.
O aspecto mais grave deste clima de descontentamento e queixume é, no entanto, a ingratidão. Tudo aquilo que somos e temos devemo-lo ao sistema que nos sustenta. É este mundo que tanto desprezamos que nos alimenta todos os dias, nos veste, abriga, educa e orienta. Podemos protestar, mas é graças a ele que todos sobrevivemos. Aliás, os críticos só conseguem atacar com tanta eficácia o regime usando os largos meios que o mesmo lhes fornece.
Esta é hoje a suprema posição incorrecta, mas quero dizer uma palavra a favor deste nosso horroroso sistema. Não porque é bom, justo ou agradável, mas porque é nosso. Tem muitos defeitos, mas a grande vantagem de existir.

(publicado também aqui)

2 comentários:

Anónimo disse...

O dólar manteve o valor real durante todo esse tempo? Ou está a estatística a precisar de uma correção em termos de poder real de compra?

hf disse...

mais um pangloss neoliberal em sintonia com grandes pensadores de direita como fukoyama, joao miranda ou josé socrates.