18/10/10

Não basta produzir as bicicletas, é preciso também roubar as bicicletas

Por vezes, no Ladrões de Bicicletas, há quem, à procura de desconstruir o que chamam de “futuro radioso pós-industrial”, acabe por nos convidar, a nós, leitores, a tomar lugar no comboio que nos levará a um radioso futuro industrial. É o que em parte sucede neste post do Nuno Teles, que coloca várias questões muito interessantes, e a que apenas me referirei de modo disperso, procurando o dissenso mais do que o consenso.

Em primeiro lugar, em relação ao “radioso futuro pós-industrial” e necessidade da sua desconstrução, tanto sentida pelo Nuno. Se com este esforço de desconstrução entendemos a promoção de uma política de lutas laborais em torno dos novos modos de exploração que por aí proliferam, eu não poderia estar mais de acordo com o Teles. Mas temo, sinceramente, que não seja apenas isto. E sim, também, uma certa vontade de regresso a um modelo industrial. Não se trata, por certo, do regresso à exploração do século XIX ou da adopção da exploração tal como existe na China de hoje; e, para descanso dos nossos ecologistas, o Teles diz-nos mesmo que não sonha com chaminés a fumegar por esse Barreiro a dentro. Mas sugere-nos, mais coisa menos coisa, que não vale a pena deitarmos o menino fora com a água do banho. Ora, a diferença entre o menino e a água do banho não é assim tão nítida que a imagem resolva tudo por magia. Basta recordar que uma das fontes teóricas que animam o Teles e também Chang - falo de Friedrich List - é igualmente o objecto de uma das primeiras e mais profundas críticas de Marx ao capitalismo. Onde List via o menino (a indústria em desenvolvimento para libertar a nação alemã), Marx via a água do banho (o idealismo de uma burguesia que para implementar o capitalismo industrial associava-o a um projecto nacionalista supraclassista).

Enfim, eu não reduziria o "radioso futuro pós-industrial" a uma promessa acalentada apenas por alguns economistas e governos que não produzem bicicletas e em tempos encontraram no “choque tecnológico” uma fórmula mágica para fugirem em frente. NA verdade, a magicidade da fórmula e a capacidade de encetar uma fuga em frente não são indiferentes ao facto da promessa da passagem do trabalho manual (não necessariamente enformado em trabalho industrial, mas assim muitas vezes concebido em termos de imaginário) para um trabalho não-manual é ser também musiquinha agradável para os ouvidos da resistência (expressa de várias formas) do trabalhador manual à rotina e ritmo que lhe era e é imposto em tais circunstâncias.

Quando se diz que o homem é o principal capital humano, o que pode ser dito a partir do produtivismo de Estaline como do biopoder de Foucault, estamos não apenas a falar da máxima exploração (exploração do corpo mas também da alma, do tempo de trabalho mas também do tempo de vida) como também da máxima subjectivação (máximo nacionalismo, no caso de Estaline; máximo empreendorismo, seguindo pistas de Foucault). Ora, esta passagem não é apenas uma jogada esperta de quem dirige a economia na URSS dos anos 40 ou nas grandes empresas de hoje. É também uma resposta à resistência dos trabalhadores a anteriores regimes de produção. É um erro tanto a nível político como histórico ignorarmos esta resistência, repito. O nacionalismo de Estaline é a uma forma virtuosa (na sua componente consensual como na sua componente coerciva) de mobilizar os produtores no quadro de uma sociedade que acalenta a promessa de acabar com a exploração; e sobre o tema do biopoder, algo de semelhante poderia ser argumentado.

Em segundo lugar, a dimensão quantitativa da passagem do industrial para o pós-industrial não esgota a questão nem política nem historicamente. Politicamente, a questão passa por olhar com atenção para sectores laborais que, pela sua posição nos circuitos económicos e sociais em geral (em geral, isto é, tanto na sociedade como no mundo), melhor podem articular universalmente processos de luta anticapitalistas (e não só). Foi por isso, e não apenas por descobrir qualquer alteração estatística, que Marx privilegiou o operariado em específico e o proletariado em geral como sujeitos políticos. Historicamente, a questão é de novo mais complicada: antes de mais, a questão estará em saber que tipo de produção (agrícola, industrial, pós-industrial, o que queiram) tende a ser determinante na qualificação da economia geral; por exemplo, no facto de boa parte do trabalho antes produzido na fábrica ser hoje produzido alhures, através do recurso à subcontratação, não está apenas em causa uma mera deslocação no espaço que possamos reduzir a mera “ilusão de óptica”. A menor centralidade da fábrica no quadro do sector industrial não é o fim do sector industrial, e entre os “teóricos pós-industriais”, de Gorz a Florida, passando pelos movimentos sociais italianos dos anos 60/70, ninguém insistiu muito seriamente nisso. Mas a menor centralidade da fábrica (ou a sua disseminação, para utilizar a expressão autonomista “fábrica social”, que sinaliza uma intersecção, mais do que um simples abandono da indústria em favor dos serviços) altera significativamente os termos do debate. Basta lembrar a importância do imaginário fabril – como factor de coesão social – nas críticas de List e do seu nacionalismo económico ao cosmopolitismo comercial liberal, importância de que é exemplo a célebre passagem em que List utiliza o exemplo da agulha e da sua cabeça para reivindicar para a nação o mesmo grau de solidariedade produtiva que Smith reivindicara para a fábrica.

O Teles fala, por exemplo, de como o design antes pertencia à fábrica e hoje é contratado fora da fábrica; ora, aqui está uma mudança que não tem que ver apenas com políticas de flexibilização laboral. É ir reler a Naomi Klein do No Logo e não apenas a do último livro. Sei que é forçado (por várias razões), mas o processo poderia, até, ser visto ao contrário, pelo menos a fim de contrariar o enfoque do Teles e encontrarmos uma posição mais equilibrada: assim, será não apenas a indústria do calçado que subcontrata o atelier de design mas também o inverso, de tal modo que a sede material da Nike fica algures entre a China e a Indonésia e países afins mas a sede imaterial está muito mais disseminada.

O outro argumento do Teles em relação a isto tudo diz-nos que o preço dos bens industriais desceu e o dos serviços não e que isso tende a esconder o facto de hoje consumirmos mais bens industriais; mas isso, por certo, acontece também a nível agrícola, onde o consumo não é menor do que ontem e onde o problema da escassez está em parte superado.

Quanto aos outros dois argumentos do Teles – a indústria dá coesão interna, por um lado, e permite uma mais poderosa inserção da nação no mercado mundial, por outro – são de índole nacionalista (ou patriótica, para não ofender ninguém) e correm o risco de cair no mesmo erro de sempre: tomar a economia como economia nacional (logo, como matéria-prima nacional, como mão-de-obra nacional, como classe operária nacional) e afastar-nos ainda mais da perspectiva de uma resposta política global. Mas esta é, sem dúvida, uma discussão mais longa. A minha posição de partida para esse debate é simplesmente esta: o enquistamento nacional do movimento operário hoje não é apenas fruto do idealismo nacionalista dos seus dirigentes políticos, mas também da incapacidade da teoria económica amiga desses movimentos trabalhar com base em pressupostos internacionalistas globalizantes. Andamos demasiado preocupados com o modo de produzir bicicletas e não tanto como o modo de roubar as ditas cujas. Uma e outra coisa têm que ser solidárias.

2 comentários:

Anónimo disse...

só para desconversar, ouvi dizer q andas por aí em duas rodas...
renegade (do comatoso spectrum)

Zé Neves disse...

sim, mas é roubada. se quiseres compita, é marcar hora e sítio.