19/08/10

Sakineh; a femina sacra?

Nem sei bem como é que o Carlos Vidal deixou passar esta em claro. Mas, para provar que até sou boa pessoa, vou escrever o que poderia ser um seu post sobre a iminente lapidação da iraniana Sakineh Mohammadi Ashtiani, recorrendo ao estimado Agamben. E a minha premissa inicial é que não nos devemos erguer em protestos contra este evento, pois ele é uma corajosa negação da premência e disseminação dessa arcana entidade, o homo sacer.

Como o filósofo romano apontou, a primeira ligação entre uma vida humana enquanto tal e a noção de sagrado foi estabelecida por Pompeius Festus: «At homo sacer is est, quern populus iudicavit ob maleficium; neque fas est eum immolari, sed qui occidit, parricidi non damnatur». O homem que não pode ser imolado (aspergido com a mola salsa) vê-se privado de uma morte ritual, é sagrado mas apenas segundo o vector negativo do tabu.
Hoje, a condenada Sakineh poderia reduzir-se a mais uma das manifestações deste homem (ou mulher) que foi condenado pelo povo mas que não pode ser sacrificado, embora da sua morte não decorra nunca uma acusação de homicídio (nem recaia a impuridade) sobre quem o extermine. E sujeitar-se-ia a qualquer banal fim, da bala à faca de um rufia numa esquina esconsa, sem glória nem redenção. Desse funesto destino foi ela salva pelas corajosas e revolucionárias autoridades judiciais iranianas! A lapidação é a mais ritual e nobre das formas sagradas de execução, mesmo na nossa tradição judaico-cristã: o Levítico fala-nos de um homem lapidado por amaldiçoar Deus; em Números, um outro imprudente foi lapidado depois de o verem a apanhar lenha no Shabbat; figuras como Naboth, Achan e Adoniram tiveram igual fim, louvado pelo nosso amado Antigo Testamento.
E nem se julgue que esta é mais uma manifestação da potestà, a «autoridade inconditional do pater sobre os seus filhos», ainda e sempre segundo Agamben. Aqui não se exerce a vitae necisque potestas. O povo julga, o povo atira a primeira, a segunda a última pedra.
A repulsa bem-pensante que as almas ignaras do costume erguem à laia de véu pudico para ocultar o mundo é afinal o que o mesmo pensador denunciou como «a psicologização da experiência religiosa (o "nojo" e "horror" pelos quais a culta burguesia europeia denuncia a sua própria inquietude ante o facto religioso)». Apelar à clemência iraniana é então apenas mais uma demonstração de etnocentrismo imperialista, disfarçado de comiseração e bondade. Um imperialismo com miras assestadas sobre a revolução islâmica, o mais activo e eficaz baluarte contra o avanço do fascio-capitalismo. Ainda para mais, querem estes tontos do costume impedir a pobre "vítima" de dar ao fim da sua vida um sentido de re-sacralização do quotidiano, testemunhado pelas centenas de mirones que vão assistir à execução, mastigando o seu falafel.
Finalizemos com algumas palavras de Sain-Just, que colocarão no seu ínfimo lugar todos os pseudo-humanistas que ignoram tudo, mas tudo, sobre história, destino ou revolução: «Le vaisseau de la Révolution ne peut arriver à bon port que sur une mer rougie par des torrents de sang», o que é de uma clareza transparente quando pensamos na gloriosa resistência que o Irão tem oposto às legiões de fantoches que o imperialismo contra ele lança quotidianamente. «Le législateur commande à l’avenir; il ne lui sert de rien d’être faible», pois, afinal,  todos sabemos que «Une nation ne se régénère que sur des monceaux de cadavres». Inch'Allah!


PS: antes que alguém me acuse sei lá do quê, olhem que isto é apenas um inofensivo pastiche. Uma forma meio aparvalhada de, brincando com coisas sérias, demonstrar que o uso de fontes respeitáveis pode caucionar as maiores cretinices.

7 comentários:

Justiniano disse...

Rainha!! O Saint-Just, fonte respeitável!!??
Francamente!!!

Luis Rainha disse...

Estava mais a pensar no Agamben. O maluco francês era mais o chantilly no topo do bolo... embora seja uma das referências do CV.
:-)

Sérgio Lavos disse...

Caríssimo,

onde estão os !!!!, os bolds e as MAIÚSCULAS? E os insultos? E as acusações a trouxe mouxe de ignorância geral da populaça? Pode fazer muito melhor do que isto com o Agamaben do Vidal...

Luis Rainha disse...

Sérgio,

Ainda há uns tempos arranjei pachorra para me dar a esse trabalho. Mas a poluição visual resultante é preço alto de mais pela graça.
Quanto à segunda acusação, olhe que «os pseudo-humanistas que ignoram tudo, mas tudo, sobre história, destino ou revolução» podia bem ser Vidal vintage...

Miguel Cardina disse...

O humor sarcástico é uma arma poderosa. Só faltava alguma coisa sobre a leitura que Derrida faz da leitura que Kierkegaard faz do sacrifício (do filho) de Abraão.

Miguel Serras Pereira disse...

Impecável. Sem tirar nem pôr.

Abraço para ti

miguel sp

Sérgio Lavos disse...

Luís,

ok, tem razão, é poluição visual que danifica irremediavelmente o template do blogue. E a frase podia ser Vidal vintage, é verdade. Olhe, e resultou tão bem o seu post (eu estava a brincar no primeiro comentário, está muito bom) que o Vidal enfureceu-se. Novamente. E tem bolds. Mas não tem !!!. Ele deve ter lido os comentários...