08/03/10

Negro solar

Eis ao que venho: falar de tudo e de nada, de memória e de futuro, do avesso e do direito, sobretudo do nunca por de mais lembrado direito à indignação.
Falemos portanto neste primeiro dia, como propôs a Morsa, de botas, lacre, veleiros, reis e couves da casa, de saber porque ferve o mar, ou se há porcos com asas.

Botas: eram brancas e ortopédicas as que usava em criança; brancas como a roupa, sinal de limpo e de puro. Negros eram o carvão, os pecados, a fome, a pele e a alma dos outros, daqueles que Deus esquecera no lume ao cozer o barro do primeiro homem.
Estava tudo na Alice, evidentemente.

- Quando uso uma palavra – disse Humpty Dumpty em tom escarninho – ela significa exatamente aquilo que eu quero que signifique... nem mais nem menos.
- A questão – ponderou Alice – é saber se o senhor pode fazer as palavras dizerem coisas diferentes.
- A questão – replicou Humpty Dumpty – é saber quem manda.

Quebrado o lacre, encontro outro livro – e novos significados. É João Cabral de Melo Neto e os seus Poema(s) da Cabra:


1.
A cabra é negra. Mas seu negro
não é o negro do ébano douto
(que é quase azul) ou o negro rico
do jacarandá (mais bem roxo).

O negro da cabra é o negro
do preto, do pobre, do pouco.
Negro da poeira, que é cinzento.
Negro da ferrugem, que é fosco.

Negro do feio, às vezes branco.
Ou o negro do pardo, que é pardo.
disso que não chega a ter cor
ou perdeu toda cor no gasto.

É o negro da segunda classe.
Do inferior (que é sempre opaco).
Disso que não pode ter cor
porque em negro sai mais barato.
2
Se o negro quer dizer noturno
o negro da cabra é solar.
Não é o da cabra o negro noite.
É o negro de sol. Luminar.

Será o negro do queimado
mais que o negro da escuridão.
Negra é do sol que acumulou.
É o negro mais bem do carvão.

Não é o negro do macabro.
Negro funeral. Nem do luto.
Tampouco é o negro do mistério,
de braços cruzados, eunuco.

É mesmo o negro do carvão.
O negro da hulha. Do coque.
Negro que pode haver na pólvora:
negro de vida, não de morte.
3
O negro da cabra é o negro
da natureza dela cabra.
Mesmo dessa que não é negra,
como a do Moxotó, que é clara.

O negro é o duro que há no fundo
da cabra. De seu natural.
Tal no fundo da terra há pedra,
no fundo da pedra, metal.

O negro é o duro que há no fundo
da natureza sem orvalho
que é a da cabra, esse animal
sem folhas, só raiz e talo,

que é a da cabra, esse animal
de alma-caroço, de alma córnea,
sem moelas, úmidos, lábios,
pão sem miolo, apenas côdea.

É ainda João Cabral que me ocorre sobre veleiros: mal sabiam os velejadores com que atenção os seguia vogando entre as grades da janela, quarenta anos atrás, tentando recordar as palavras exactas de Paisagem pelo telefone:

Sempre que no telefone
me falavas, eu diria
que falavas de uma sala
toda de luz invadida,

sala que pelas janelas,
duzentas, se oferecia
a alguma manhã de praia,
mais manhã porque marinha,

a alguma manhã de praia
no prumo do meio dia,
meio dia mineral
de uma praia nordestina,

Nordeste de Pernambuco,
onde as manhãs são mais limpas,
Pernambuco do Recife,
de Piedade, de Olinda,

sempre povoado de velas,
brancas, ao sol estendidas,
de jangadas, que são velas
mais brancas porque salinas,

que, como muros caiados
possuem luz intestina,
pois não é o sol quem as veste
e tampouco as ilumina,

mais bem, somente as desveste
de toda sombra ou neblina
deixando que livres brilhem
os cristais que dentro tinham.

Pois, assim, no telefone
tua voz me parecia
como se de tal manhã
estivesses envolvida,

fresca e clara, como se
telefonasses despida,
ou, se vestida, somente
de roupa de banho, mínima,

e que por mínima, pouco
de tua luz própria tira,
e até mais, quando falavas
no telefone, eu diria

que estavas de todo nua,
só de teu banho vestida,
que é quando tu estás mais clara
pois a água nada embacia,

sim, como sol sobre a cal
seis estrofes mais acima,
a água clara não te acende:
libera a luz que já tinhas.


Poucos dos muitos cognomes que tive de decorar dos reis de Portugal ainda recordo, mas não esqueci a descrição de Herculano da recusa do infante D. Dinis a beijar a mão de Leonor Telles:

- Nunca um neto de Dom Afonso do Salado beijará a mão da que el-rei seu irmão e senhor quer chamar rainha. Nunca Dom Dinis de Portugal beijará a mão da mulher de João Lourenço da Cunha. Primero ela descerá desse trono e virá ajoelhar a meus pés; que de reis venho eu, não ela.


Cortadas muito finas, sob a forma de caldo verde, as couves da casa foram, anos a fio, o meu principal remédio contra as enxaquecas. Sem garantia de êxito, aqui fica a receita.


Quanto ao mar, como não há de ele ferver, vendo como se vivem as coisas da terra?. E embora, em Timor-Leste, se diga “feminino” o mar sem ondas e “masculino” o mar fervente, hoje, 8 de Março, todo o mar ferve no feminino, pela grande razão de que ainda é necessário.


Todos os porcos, como todas as vacas, têm asas desde que ousem voar – “Donna, Donna”, Donovan – mas os que mais recordo estavam fardados de almirante, e mãos subversivas tinham-nos lançado em corrida pelas ruas de Lisboa...

12 comentários:

Galaaz disse...

Para quem chegou para falar de tudo e de nada foste logo ao que interessa - virar e revirar termos e histórias até ao cansaço, mesmo que o rouxinol só cante quando estivermos a dormir. Alguém o há-de ouvir. Grande estreia, Diana.

xatoo disse...

bem vinda Diana
quando se terminar na época das fábulas logo nos irá explicar o caso da sua assinatura na petição contra "os presos politicos" em Cuba.
Espero

JOSÉ LUIZ FERREIRA disse...

Claro. Humpty-Dumpty tem toda a razão. Pelo nosso lado. o essencial está em impedir que as palavras signifiquem o que "eles" querem. Saber quem manda, no fundo.

Conceição disse...

gosto dessa citação mas não sei q tradução utilizou, na minha edição está:
"a questão está em saber - disse Humpty Dumpty - quem deverá ser o mestre, é só isso"

há uma diferença pois um mestre ensina sem impor, até o aprendiz voar por suas próprias asas.... quem manda pode tornar-se ditador....pois o poder inebria.
boa sorte no blog q irei lendo.

aafonso disse...

A questão é saber onde assinar o que os $enhores mandam.

"arranja-me um emprego...Se meto os pés para dentro, a partir de agora
Eu meto-os para fora...Se queres que seja duro, muito bem eu serei duro
Se queres que seja doce, serei doce, ai isso juro... Sabendo que as minhas intenções são das mais sérias
Partamos para férias...Se eu mandasse neles, os teus trabalhadores
Seriam uns amores
Greves era só das seis e meia às sete
Em frente ao cacetete
Primeiro de Maio só de quinze em quinze anos
Feriado em Abril só no dia dos enganos
Reivindicações quanto baste mas non tropo
- Anda beber mais um copo...Arranja-me um emprego, pode ser na tua empresa, concerteza
Que eu dava conta do recado e pra ti era um sossego.

Conceição disse...

aqui deixo esta referencia do nuno crato bem a proposito

http://sorumbatico-longos.blogspot.com/2010/03/alice-torna-se-filosofa.html

JOSÉ LUIZ FERREIRA disse...

Prefiro a tradução da Diana. No original está assim:

"The question is," said Humpty Dumpty, "which is to be master - that´s all."

"Master" pode ser traduzido por "mestre" ou "senhor". Neste contexto, o uso de "which" em lugar de "who" indica um número limitado e determinado de entidades em competição por um estatuto.

O parágrafo seguinte explicita quem são estas entidades: Humpty Dumpty, por um lado, e do lado oposto as palavras. O estatuto por que competem é um estatuto de poder: os adjectivos são descritos como dóceis e os verbos como orgulhosos e difíceis de dominar.

Repito: Humpty Dumpty tem razão. A questão está em saber se somos nós quem manda nas palavras, ou se são as palavras que mandam em nós.

Isto, que era válido no tempo de Lewis Carroll, é válido por maioria de razão no tempo em que vivemos, em que toda a política é feita de spin.

Conceição disse...

quem manda em nós a realidade relativa objectivada pelas palavra sou a realidade a absoluta sem palavras?....
"did any scientist ever consider the huge amount of energy created by billions of brains? If energy never disappears, where does it go?? No one? Well, Buddhism explains about it since ages: it shapes what you perceive as your conventional reality! But till realizing "emptiness", we are in the boat of conventional reality, and we have to learn to understand it, transcend it, explain it.
Realising Emptiness doesn't mean you escape conventional reality (at least in Mahayana/Vajrayana Buddhism). It means you "see through", you are not fooled by illusions. And you use a conventional existence to help others to make their way towards Liberation.
Emptiness is not "absence of existence"; it's "absence of self-inherent existence"!

Manuel Monteiro disse...

Diana
Vens falar de tudo e de nada.
Espero que fales alguma coisa da esquerda. Aquela.
Com um abraço de amizade
Manuel Monteiro

Diana Andringa disse...

Obrigada, Galaaz. Vamos a ver se me aguento neste mar desconhecido.
Xatoo, espero que não tenha nada contra as fábulas. Quanto à assinatura, a minha noção de amizade passa por assinalar aos amigos as actuações que considero erradas.
José Luiz Sarmento, pelo nosso lado é essencial também usar as plavras justas. Permito-me citar um excerto de um artigo publicado no PassaPalavra, boletim do Sindicato dos Jornalista, pelo Professor Joaquim Coelho Rosa:
«Perverter o uso da palavra é, sempre, perverter a própria condição humana de existência. Não é por acaso que todas as ditaduras e censuras se estribam no alibi da defesa contra o abuso da palavra para escamotearem a liberdade dos homens. Daí que, em democracia, haja duas preocupações importantes a tomar neste capítulo.
A primeira é a do rigor no uso da palavra, sobretudo por parte daqueles que, por uma razão ou por outra, têm o privilégio (e o risco) de verem a sua palavra amplificada pelas próprias condições de exercício profissional, como é o caso dos jornalistas, políticos, professores e padres.
A segunda é a de zelar, sobretudo através do rigoroso exercício da palavra, pela disseminação desse rigor em todo o tecido social. Não medimos, muitas vezes, o perigo terrível que ameaça uma sociedade em que não se pensa nem se fala com o mínimo rigor lógico e gramatical, em que tudo se diz sem a mínima preocupação de justeza e coerência conceptual. Uma sociedade que se acostuma a viver desse modo está à mercê do primeiro manipulador de palavras que lhe surja, pois ficou privada de qualquer critério para formular juízos de valor ou de pertinência.
Parece, muitas vezes, que no tempo da ditadura, que mais não fosse para fugir à Censura, se era muito mais rigoroso e criterioso no uso da palavra. Paradoxo dos paradoxos, dir-se-ia que nós, portugueses, depois de nos ter sido permitida a liberdade, deixámos de cuidar do lugar eminente onde a liberdade se alberga e manifesta. Dir-se-ia que, malgré soi, a ditadura, ao obrigar à vigilância do discurso, cuidou mais da liberdade do que a democracia. Se assim é, acautelemo-nos, pois estamos maduros para nova ditadura.»
Tenho-me lembrado muitas vezes deste artigo nos últimos tempos.
Afonso, é sempre bom ler Sérgio Godinho - e ainda mais ouvi-lo.
Conceição, traduzi livremente.
Manuel Monteiro: voltando ao Humpty-Dumpty, espero que a palavra "esquerda" signifique o mesmo para ambos.

Manuel Monteiro disse...

Diana
A minha esquerda é, desde os meus 16 anos,altura em que entrei numa fábrica, a esquerda da revolução.
Entretanto, muitos camaradas intelectuais, que me deram a conhecer a teoria dessa revolução, passaram a fazer parte do sistema que tanto condenaram, embora continuando a dizer-se de esquerda. Continuo a ser amigo desses meus antigos camaradas, mas não os acompanho nessa deriva social-democrática.
É isso, estimada Diana: burro velho não aprende línguas e eu estou velho de mais para me converter a quem me ultraja...
Manuel Monteiro

Diana Andringa disse...

Burro velho pode aprender línguas, digo eu, que voltei a estudar muitos anos depois de não honrar a minha inscrição na Universidade.
Mas, velho ou novo, nem um burro(animal,aliás, inteligente, estimável e infelizmente não devidamente apreciado) deve ser forçado a converter-se a quem o ultraja.
Abraço e força!