05/08/10

O "multiculturalismo" lapidar

Bem haja - como diz o nosso companheiro de jornada das caixas de comentários Justiniano - a Ana Cristina Leonardo pela ideia que teve de iniciar na blogosfera a divulgação na íntegra desta crónica do Manuel António Pina. Bom seria poder esperar que todos os ruidosos adeptos da libertação dos povos e irredutíveis castigadores mais ou menos vidalizados do "logocentrismo monoculturalista democrático" de tradição ateniense seguissem o exemplo da Meditação na Pastelaria e aderissem à campanha, retomando a crónica que se segue. E que doravante se não esquecessem, para glosar o belo mote sugerido ontem pelo Luis Rainha, do fogo de artifício quando decidirem integrar alguma manifestação de apoio "anti-imperialista" aos líderes da resistência islâmica.

O silêncio é o modo como o chamado "multiculturalismo" resolve os impasses morais a que o conduz o seu relativismo. Ou muito me engano ou nenhum dos partidos que, em Portugal, fazem bandeira política da igualdade e dignidade das mulheres (e dos direitos humanos em geral) se manifestou ainda sobre a condenação, no Irão, à morte por apedrejamento de Sakineh Ashtiani, de 43 anos, acusada de alegado adultério.
"Adultério", em regimes islâmicos como o do Irão, é qualquer relação sexual fora do casamento, abrangendo não só pessoas casadas como viúvas ou divorciadas e homossexuais. Até ser-se vítima de violação é "adultério".
Em 2008, na Somália, Asha Ibrahim, de 13 anos, foi levada para um estádio e ali publicamente apedrejada até à morte pelo "crime" de ter sido violada. Para prolongar a agonia e sofrimento dos condenados, o art.º 104.º do Código Penal iraniano manda que as pedras "não podem ser tão grandes que matem imediatamente, nem tão pequenas que não possam ser classificadas de pedras". Nada disto incomoda a boa consciência "multicultural". O que a incomoda é a proibição da "burka" em França.

3 comentários:

lpb disse...

Não sei se já reparou, mas, tal como o Nathan Glazer afirmou, em tempos, que éramos todos multiculturalistas, a ideia de multiculturalismo está perfeitamente ultrapassada. Claro que, em Portugal, com o jet lag habitual, continuam a discutir-se temas poeirentos com categorias analíticas poeirentas. Ainda não descobriram que empolar a defesa do republicanismo e das Luzes contra o fascismo verde (categoria também ela engraçada, como defendeu num comentário qualquer a mais um post engraçado) também é a causa maior de gente como o Paul Berman e do Daniel Pipes.
Já agora, usar argumentos capciosos, como este - "Nada disto incomoda a boa consciência "multicultural". O que a incomoda é a proibição da "burka" em França." -, parece-me, a um tempo, apropriado e ridículo. Apropriado porque encaixa na narrativa de poder que os fãs autoproclamados da cidadania democrática e autogovernada instrumentalizam para apagar quaisquer atritos com a realidade, essa chata que insiste em desmontar as vossas categorias límpidas. Ridícula porque remete os ditos fãs a uma posição reaccionária. Mais que isso, remete-os para a condição de iludidos. É que ainda não perceberam que a proibição da burqa tem pouco a ver com a defesa dos direitos das mulheres ou qualquer causa romântica. É uma questão política e seria melhor que se prestasse atenção às configurações e discursos institucionais onde se plasmarão estas opções. Mas isso é mais chato e desagradável. É melhor apontar as baterias para a Somália/Irão e deixar implícita uma razão muito mais básica para a proibição da burqa: se vocês fazem, nós também.

O extraordinário, no fim de contas, é que posts como este alienam quem, por princípio, considera que é legítimo impor sanções ao uso da burqa. É o meu caso. Mas, como no que respeita à "guerra à droga", está mais que visto: soluções do lado da oferta não resultam. Mas enfim, como se tem visto nos EUA, essas soluções soam sempre melhor aos proibicionistas encapotados; exime-os de procurar soluções e mantém-lhes as categorias limpinhas, limpinhas.

Ana Cristina Leonardo disse...

Miguel, obrigada pelo link. Mas era só um post(sinho) sem pretensões... (românticas?!)

Miguel Serras Pereira disse...

lpb,
confesso que não percebi a intenção do seu comentário. No entanto, o "se vocês fazem, nós também" é uma lógica ou um método de combate que tenho repudiado em tudo o que escrevo (e, tanto quanto posso avaliar, o MAP não menos do que eu).
Saudações republicanas

Cara Ana Cristina,
sou eu quem reitera os agradecimentos, ora essa.
Cordial abraço

msp