27/05/10

Os Intelectuais festejam, os Trabalhadores sofrem e a Malta come caracóis

A contraposição entre festa e luta é reveladora de um entendimento miserabilista acerca da natureza dos que protestam. Tal entendimento toma quem protesta como seres despojados de qualquer tipo de sensibilidade. Ou seriam seres embrutecidos pela exploração de que seriam vítimas ou seriam seres tomados pelo desespero que faria com que levassem tudo à frente. Felizmente, a história do movimento operário raramente pode ser compreendida à luz de uma tal dicotomia. E apesar de cotejarem qualquer um dos dois pólos acima referidos, tanto o cartaz da CGTP como o cartaz da concentração anti-capitalista escapam à oposição festa-luta. Ou alguém acha que o cartaz da CGTP, com o festival de cores com que nos presenteia, está a fazer por desmerecer a gravidade da situação da luta? A ideia de que a gravidade da situação dos trabalhadores é incompatível com um imaginário festivo é a última das privações: mas esta é lhes imposta por intelectuais que tentam, dessa maneira, mostrar que sentem as dores dos trabalhadores de modo tão intenso como os próprios trabalhadores. E esta tentativa de "colagem", porém, não deixa de ter como subtexto a ideia de que só esses intelectuais é que têm direito à festa. Ou alguém duvida que, depois da manif, boa parte dos que estamos aqui a escrever sobre este assunto, vamos é comer uns caracóis e beber umas cervejas e festejar a "jornada de luta"? Nesse momento, é só olharem para o lado e verem não sei quantos trabalhadores a fazerem o mesmo. Talvez aí vejam quão idiota é este jogo de espelhos.

16 comentários:

brunopeixe disse...

Pois é Zé, a melhor maneira de encerrar uma posição numa menos-valia argumentativa é dizer que ela é dicotómica. Acontece que a teu texto não supera essa dicotomia, antes a prolonga, mas do outro lado, do lado da festa.
Mas mesmo dentro desta dicotomia, dás saltos lógicos que me são difíceis de acompanhar - culpa minha, se calhar. É que não percebo porque é que recusar a concepção festiva da luta é representar os trabalhadores como embrutecidos pela exploração, ou condená-los a serem vítimas alienadas ou furiosos irracionais? Existe uma terceira possibilidade, que não a da carneirada infeliz, nem do antagonista dionisíaco, e é nessa possibilidade que me revejo: a de uma concepção da política perfeitamente indiferente à festa e ao sofrimento. Nem sacrifício nem orgia. Uma das últimas coisas interessantes que o Sloterdijk terá dito, mesmo se pelas razões errada, é que o orgasmo é de direita. Nem mais. Fica com um abraço,
bruno

Zé Neves disse...

Bruno, o sloterdijke disse isso ou porque se acha de direita ou porque não tem orgasmos.

eu também acho: nem sacrifício nem orgia como modos de luta.

mas, é assim que leio o panfleto (não só assim, mas também assim), a verdade é que há uma estética de sacrifício que acompanha todas as medidas do PEC e que é preciso ir destruindo.

abç

brunopeixe disse...

não sei se ele se acha, e não é muito relevante: ele é, de facto de direita. mas nessa frase tem muita razão - no capitalismo tardio o imperativo já não é o da repressão, mas o do gozo, como diz o Zizek, e bem.

mas não podia estar mais de acordo contigo quanto à necessidade de combater a ideologia sacrificial do PEC e das políticas de austeridade em geral. só não quero é combatê-la com outra ideologia sacrificial, nem com uma ideologia carnavalesca (nem do carnaval bakhtiniano, nem de outro qualquer).

vamos a eles!

abraço,
bruno

Ricardo Noronha disse...

«Perfeitamente indiferente» é provavelmente a expressão mais certeira para descrever a posição a partir da qual escreves Bruno. É uma impossibilidade ser completamente indiferente, mas enquanto metáfora aplica-se bem.

António Geraldo Dias disse...

Acabei de ler isto que vou deixar aqui - a alternativa,o 5 dias está inacessível:
We have something to learn from Fanon: ‘‘one cannot divorce the combat for
culture from the peoples struggle for liberation’’. This raises the question of the
political subject, revealing serious limitations of the biopolitical model of state
power invoked by some Subalterns.

Anónimo disse...

Uma mensagem de Castoriadis, que pode ser útil- " A crise de valores torna a sociedade capitalista quase ingovernável, mas nesta crise são também afectados/ implicados os valores, as ideias e as organizações que tinham ajudado a construir o proletariado. Sintetizando: uma revolução vitoriosa ocorreu na Rússia em 1917 e não se repetiu - mesmo em países mais avançados. Os revolucionários não possuem capital depositado no Banco da História que se acumularia pela multiplicação de lucros compostos. Se existe, portanto, um amadurecimento das condições do socialismo, ele não pode nunca ser um amadurecimento das condições " objectivas ", porque as condições puramente objectivas por elas-próprias não possuem uma significação definida. Essa maturação não pode constituir senão uma progressão de outra natureza. E essa progressão constata-se bem quando se considera a sucessão das revoluções operárias. É a curva ascendente que liga os momentos altos das acções proletárias de 1848 , de 1871, de 1917 e 1956. O que constituia em Paris em 1848 a reivindicação vaga de uma igualdade económica e social gera na Rússia em 1917 a expropriação dos capitalistas; e este objectivo negativo e ainda indeterminado é decantado em função da experiência ulterior e alterado aquando da revolução húngara de 1956, pela exigência positiva da dominação dos produtores sobre a produção, isto é, pela gestão operária. A forma do poder político da classe operária tornou-se claro, da Comuna de 1871 aos Sovietes de 1917 e destes à rede dos Conselhos de Fábrica de 1956.(...) A cada instante, a experiência do proletariado constitui-se a partir da realidade presente e não a partir das " lições do passado": mas esta realidade contém os resultados da acção passada porque não é senão a etape precedente da luta de classes.(...) Transformando a realidade social pela sua acção incessante, obscura ou espectacular, o proletariado transforma ao mesmo tempo as condições da sua tomada de consciência ulterior e obriga-se, por assim dizer, a elevar a sua luta a um nível superior aquando da próxima etape ". in" Capitalismo Moderno e Revolução", Vol. 2. UGE. Paris. Niet

Anónimo disse...

Que equívoco. Uma manifestação desta natureza é suposta ser uma demonstração de repúdio, de revolta contra o governo, o pec, a europa, os 'mercados', etc (outras há que são, de facto, formas de celebração). É um protesto, não uma festa. Os trabalhadores têm «sensibilidade», corpo, vida sensual e tudo isso, mas não vão à manifestação para os celebrar nem se tornam «embrutecidos» se não o fizerem; e é essencial saber ao que se vai. Haverão sorrisos, cantares, abraços, afectos e até caracóis. Mas insisto: é bom que se saiba ao que se vai.

A questão não é assim tão artificial e não passa necessariamente pela imemorial luta entre várias facções da esquerda, nem pela suposta diferença entre intelectuais urbanos festivos e o proletário simples e honesto mas alienado do seu corpo. A manifestação terá que manifestar aquilo que pretende tornar manifesto (o descontentamento, a revolta, o repúdio pela forma como o arco da crise se está a completar encima das costas e dentro da carteira das pessoas). Quem já assistiu a formas de protesto quase exclusivamente festivas, com os vários grupúsculos (para usar um termo caro a Guattari) a 'expressarem-se'  os hippies a tocar tambor, a fumar e a comer comida vegetariana, os anarquistas de preto e botas da tropa a cantar cânticos militaristas, prontos para a 'acção directa' .... sabe que ideologicamente a festa é acima de tudo a festa do liberalismo.

Diogo Augusto disse...

A vanguarda está sempre pronta a estipular a forma ideal de manifestações da populaça.

Anónimo disse...

Que equívoco. Uma manifestação desta natureza é suposta ser uma demonstração de repúdio, de revolta contra o governo, o pec, a europa, os 'mercados', etc (outras há que são, de facto, formas de celebração). É um protesto, não uma festa. Os trabalhadores têm «sensibilidade», corpo, vida sensual e tudo isso, mas não vão à manifestação para os celebrar nem se tornam «embrutecidos» se não o fizerem; e é essencial saber ao que se vai. Haverão sorrisos, cantares, abraços, afectos e até caracóis. Mas insisto: é bom que se saiba ao que se vai.

A questão não é assim tão artificial e não passa necessariamente pela imemorial luta entre várias facções da esquerda, nem pela suposta diferença entre intelectuais urbanos festivos e o proletário simples e honesto mas alienado do seu corpo. A manifestação terá que manifestar aquilo que pretende tornar manifesto (o descontentamento, a revolta, o repúdio pela forma como o arco da crise se está a completar encima das costas e dentro da carteira das pessoas). Quem já assistiu a formas de protesto quase exclusivamente festivas, com os vários grupúsculos (para usar um termo caro a Guattari) a 'expressarem-se'  os hippies a tocar tambor, a fumar e a comer comida vegetariana, os anarquistas de preto e botas da tropa a cantar cânticos militaristas, prontos para a 'acção directa' .... sabe que ideologicamente a festa é acima de tudo a festa do liberalismo.

Zé Neves disse...

anónimo,

peço desculpa, mas não há como não acusá-lo de ignoraância histórica. é que a história do movimento operária está cheia de manifestações em que aquilo a que você chama o lado festivo esteve presente. Ou acha que "os meninos da avó" vão cantar ao primeiro de maio para boicotar a cena?

Anónimo disse...

Caro Zé Neves,

Eu não invoquei a história do movimento operário e acho a sua referência genérica, sem dúvida menos ignorante, totalmente enviesada e desprovida de actualidade. Aliás, disse que haverão certamente afectos, abraços, cantares, caracóis, isto é, aquilo a que você chama, erradamente, de «sensibilidade». Não há nada de críptico nem de misterioso: esta manifestação, com festa ou sem ela, pretende ser um protesto; pode ser um protesto com festa, mas não deve ser uma festa sem protesto. Não sei se haverá boicote ou não. Sinceramente não me interessa. Sei contudo que chamar à demarcação na participação 'crítica' é reduzir esta última a um puro vazio retórico ideológico. Quis também notar que, atendendo ao plano ideológico actual, o lado festivo de qualquer manifestação que se diga de esquerda tem que ser ponderado, esse sim, de forma crítica, para que a festa não acabe como arma ideológica das lógicas afirmativas do liberalismo. Dou-lhe, dentro da minha ignorância, uma mera impressão empírica: já assisti a várias manifestações mais festivas que outra coisa (embora com reivindicações muito específicas), onde vários grupos se 'expressam' de forma diferente ocupando o espaço sectariamente, e, digo-lhe sem cinismo, ideologicamente é um espectáculo digno do mais fervoroso dos liberais. Pode ser que em Portugal nem o sectarismo político e cultural-urbano, nem a hegemonia liberal, sejam assim tão prementes. Se calhar vão todos (sindicalistas, anarquistas, autonomistas, comunistas e polícias) acabar a comer caracóis no mesmo sítio. Mas mesmo assim, convém estar atento e pensar onde está o horizonte ideológico do neoliberalismo. Convém estar atento não vá a festa ter a participação ideológica de uns quantos indesejados.
cumprimentos

Miguel Serras Pereira disse...

Bruno, os manes de Marx te valham, rapaz.
Não me digas que, sendo "no capitalismo tardio o imperativo já não é o da repressão, mas o do gozo, como diz o Zizek, e bem", concluis que "quanto mais impotentes, mais subversivos, ou que "a impotência é a verdadeira revolução"?
Antes mesmo de te interrogares sobre o conteúdo e condições de vigência do "hedonismo" da "modernidade líquida" como justificação (ideológica, "ética") da frustração e da precarização generalizadas cobradas pelo casino e o seu ordenamento do território circundante, repara que o Zizek, mexendo-se muito, raramente acerta nalguma coisa mais do que o relógio - recordado aqui há dias pelo Ricardo - que, quando parado, acerta nas horas duas vezes por dia.
"Sentidos sóbrios", "olhar desenganado" : nem a carnavalização da política nem a sua sacralização sacrificial fazem parte da racionalidade democrática.
Cordial abrç

miguel sp

* disse...

anónimo,

era bom que parasse de tentar arrombar portas que estão abertas. onde é que o tal apelo à concentração anticapitalista fala de festa sem protesto?!?!

Anónimo disse...

Esta é a última porta aberta que arrombo. Eu não comentei o conteúdo do cartaz, mas sim um, de entre vários, posts publicados aqui que visam responder à questão levantada no 5 dias sobre a festivalização da política. Mas já agora, se a crise dos poderosos é a festa dos oprimidos depreender-se-á que a continuação da acumulação de capital pelos poderosos é a impossibilidade de festa dos oprimidos?

Eu, na minha excelsa ignorância, acho a questão válida. Claro que há processos de celebração que são puros actos políticos, e não há verdadeira emancipação sem eles (Ainda há dias acompanhei vários eventos organizados por estudantes que ocuparam uma parte duma universidade). E depois? Disse, e repito, que em eventos da natureza da manifestação agendada é bom que se pondere a forma e conteúdo do seu teor festivo ou celebrativo para que não se acabe a festa a dormir com o inimigo. Na nebulosa ideológica e 'cultural' dominante isto é bem possível, por muito que se grite slogans anticapitalistas. (por exemplo, já participei em manifestações onde havia quase mais fotojornalistas que manifestantes e onde estes se babaram de júbilo quando o anarquista da acção directa, o mesmo de sempre, lá partiu a janela do banco) Invocou-se neste blog, por contraste, o corpo, a sensualidade e a história do movimento operário (só faltou mesmo a relação entre a revolução e os grandes movimentos dos corpos celestes) para defender a 'festa' e pôr de parte a questão. Isto tudo deve ser o resultado de muita erudição e urbanidade, mas eu, por mim, só vejo retórica.

Zé Neves disse...

anónimo

diz que só vê retórica, mas, lamento, não tenho como fugir a essa armadilha: é que a retórica não é só retórica.

mas adiante.

a festa, no sentido em que é usado no panfleto (mas sou eu a presumir, que não escrevi o panfleto nem sei excatamente quem o fez), não se opõe à política mas ao trabalho.(e nesse setnido à acumulação do capital).

o

Anónimo disse...

oh camaradas, será melhor este ano não fazer a FESTA do Avante para não perturbar a luta?