08/05/10

- Mais c'est une révolte? - Non, Sire, c'est une révolution…

Os efeitos sociais e políticos da crise financeira, bem ilustrados na actual situação da Grécia, fazem com que o menos provável seja que tudo fique na mesma. É improvável, para dizer a verdade, que o regime das sociedades de tipo ocidental, para falarmos apenas delas, não tenha, para subsistir, de se reciclar recorrendo à lógica oligárquica que organiza o seu poder político, confiado já em grande parte, ao arrepio de qualquer democracia, ao que se decide na esfera económica institucionalmente subtraída no essencial aos direitos e liberdades constitucionais.
Dada esta improbabilidade, a crise e os seus efeitos são, como ocasião ou oportunidade política, de uma ambivalência fundamental, que será a acção colectiva e as relações de força entre os seus protagonistas a decidir num sentido ou noutro. 

A crise abala, sem dúvida, as formas de governo oligárquicas e liberais desta parte do mundo. Mas pode favorecer ou tornar mais ameaçadores certas propostas de reforma ou redefinição dos regimes assim abalados.
 Começam, por exemplo, a surgir apelos a “intervenções providenciais”, acima da “política”, que a denigrem enquanto actividade aberta à iniciativa dos cidadãos, insistindo na sabedoria, na autoridade e na competência de um chefe, acima dos partidos e das classes, que “meta as coisas na ordem”. Nunca lembraremos de mais que os regimes de tipo fascista, na base de corporativismos vários, se reclamaram de uma inspiração e objectivos “sociais” – e de uma concepção “providencial” do Estado "forte", justificado pela necessidade de se estabelecerem compromissos equilibrados e superiormente arbitrados entre os diferentes interesses de classe (“sócio-profissionais”).
Outra variante de reciclagem autoritária dos actuais regimes é a da apologia de “organizações de confiança”, “direcções preparadas”, armadas por ideologias, concepções, competências “firmes” e aplicados por equipas “capazes” – e para isso dotadas da “autoridade” necessária. Trata-se de uma orientação que encontramos em quadrantes que se reclamam de diferentes tradições, e assume muitas vezes a forma da reivindicação de um maior papel do Estado, ao mesmo tempo que alimenta a confusão entre “estatal” e “público”, ou identifica a defesa do “bem público” com o reforço dos aparelhos de Estado centrais e das suas competências de “direcção”, tanto da actividade económica como do espírito. À direita, um bom exemplo desta variante são certas versões da "doutrina social da Igreja"; à esquerda, ilustra-a a reactivação prática e ideológica de uma espécie de pós-leninismo doutrinariamente eclético, mas organizativamente fiel à lógica da "vanguarda da classe", do "partido revolucionário" e dos "funcionários da revolução" ou "revolucionários profissionais".
A outra face da crise é a que surge como ocasião ou oportunidade política de uma democratização efectiva das instituições e da extensão das capacidades políticas, tendencialmente governantes, dos cidaãos. A via aqui passa por uma transformação radical e por exigências de autonomia e auto-governo a que podemos chamar revolucionárias, na medida em que apelam ao exercício instituinte de um regime de poder político alternativo - o poder político da cidadania governante.
Nesta perspectiva, a democracia e a revolução exigem-se mutuamente. A revolução visa a democracia porque, como escreveu o Pedro Viana há tempos, no 5diasA democracia na sua forma mais radical … implica a extensão do princípio igualitário a todas as áreas da vida em sociedade: eu só tenho liberdade para votar e decidir como igual, se fôr igual, se tiver igual poder. E a democracia visa a revolução, ou não pode deixar de ser revolucionária, porque a extensão do princípio igualitário, que implica a extensão simultânea das capacidades políticas da liberdade, exige uma transformação institucional radical, uma outra divisão política do trabalho e uma outra divisão do trabalho político.
Deste modo, como também no blogue já citado, e na caixa de comentários de um post do Ricardo Noronha, escrevi eu próprio:

A revolução é democracia radical, autonomia, república de conselhos ou assembleias igualitariamente abertas à participação de todos os cidadãos que não se auto-excluam, conspirando em vista de reservar a decisão política suprema a um grupo, classe, organização ou corpo profissional particular. Sem dúvida que o poder político revolucionário não pode, sob pena de assinar antecipadamente todas as capitulações, pôr de lado a força – em última análise armada – que garanta a cidadania governante, o exercício do poder pelos cidadãos organizados, contra acções que visem expropriá-los desse poder. … Assim, num vocabulário grato ao Zé Neves, a revolução é o movimento e o encadeamento das acções através das quais a “multidão” institui os seus membros como cidadãos governantes, detentores do poder político “legítimo” e do controle dos “meios de violência” correspondentes. Não é a substituição de governantes mais esclarecidos, mais “desinteressados”, mais “representativos do bem comum ou da classe explorada”, mais “meritórios” ou “competentes”, aos que anteriormente ocupavam os postos governamentais.
Do mesmo modo, no plano da actividade económica, a revolução não é a substituição dos proprietários ou companhias privadas pelo Estado e seus especialistas, técnicos ou capatazes de serviço, mas a sua gestão cooperativa e democrática pelo conjunto organizado dos interessados. E é, antes e depois desta transformação radical, a subordinação dos valores económicos e a destruição do primado da economia através do exercício político do poder pela cidadania governante [assegurando] a desmercantilização ou “deseconomização” correspondente da força de trabalho … . A subordinação da economia radicalmente democratizada ao poder político do auto-governo dos cidadãos e a destruição do seu primado intervêm aqui como garantindo a liberdade de criação de novos valores, usos e costumes, na dimensão informal da existência colectiva da “multidão”, bem como nas condições de existência de cada um dos seus membros.

Convém para terminar - aproveitando, do post que o Zé Neves recentemente publicou sobre Violência e Democracia,  a boleia da seguinte observação: Para mim a violência aceitável é a violência que não suspende a exigência de democracia - reflectir um pouco, tendo em conta os tempos que talvez se aproximem, sobre a violência democrática e/ou revolucionária. Em certo sentido, a democracia propõe a prática de uma razão dialógica como alternativa à violência. À violência regular da dominação hierárquica, a democracia substitui a palavra e o debate nas assembleias e órgãos de poder igualitariamente participado de cidadãos que sejam os seus próprios governantes. Mas a garantia última do poder político da liberdade dos cidadãos e do seu governo exige destes que sejam, de uma maneira ou de outra, "povo em armas".
Eis um exemplo a que já achei útil recorrer em mais de um debate e que transponho livremente de Castoriadis: O filósofo discute com o sofista, e este diz-lhe que, se não pode vencê-lo pela argumentação, pode sempre matá-lo e calá-lo de vez. Que garantia pode pôr-nos a salvo de um sofista assim, que se esteja nas tintas para princípios, procedimentos, constituições e declarações universais? A única resposta é o exercício, em última análise violento e empreendido como luta de morte, da legítima defesa. Convém que certos paladinos da “liberdade interior”, do “direito à diferença” e do “multiculturalismo” não o esqueçam.
Ora, na mesma ordem de ideias, as decisões da cidadania governante terão de ser protegidas pela sua força armada,  pela acção de "serviços de ordem" ou "milícias" não-profissionais, rotativamente assegurados. Era o que Orwell, durante a Segunda Guerra Mundial, tinha em vista ao sustentar que, depois do fim da guerra, as armas deviam continuar nas mãos e em casa dos trabalhadores, que, enquanto cidadãos tinham sido chamados a defender o país da ameaça nazi. Orwell não defendia por certo que, uma vez de armas na mão ou em casa, cada trabalhador pudesse usar as armas ou recorrer à violência para fins privados e segundo o seu arbítrio. A existência de restrições – desejavelmente severas – ao uso da violência não significa que a sua legitimidade seja monopólio de um corpo separado e profissional. A afirmação da autonomia democrática, a acção instituinte de uma livre sociedade de iguais, não pode declarar incondicionalmente ilegítimo o recurso à violência. Mas, como já disse noutra ocasião, pode e deve opor-se ao seu culto. Pode e deve desmistificar o espírito sacerdotal nostálgico e hierático, antidemocrático e irracionalista, classista e contra-revolucionário, dos que se propõem medir pelo volume de sangue derramado o carácter revolucionário ou radical de uma luta política. Podemos e devemos saber e dizer também que o combate pela autonomia, a luta que visa a destruição do poder capitalista, não é um carnaval, que, depois de inverter durante uns dias a ordem estabelecida, dá lugar a uma sua versão revigorada ou a uma reciclagem da dominação hierárquica. Os que estão interessados numa “revolução” que pratique e se possível refine os métodos e recursos da dominação na construção da “ordem nova”, ou que advogam um “socialismo” que faça tábua rasa das liberdades e direitos democráticos, desprezando-os como superstições “humanistas”, podem odiar o capitalismo e as oligarquias liberais, mas são tanto (pelo menos) como o primeiro e as segundas inimigos mortais da liberdade enquanto condição necessária de uma sociedade de iguais.













5 comentários:

Zé Neves disse...

caro miguel,

de acordo, ponto por ponto, e com o entusiasmo e a lucidez que a tua escrita deixa transparecer.

abraço comunista
(a minha "tradução" das tua "saudações republicanas")

Anónimo disse...

Caríssimo MS Pereira- Como "eu" o tinha previsto- lembram-se?-a tua prática teórica obriga-nos a um constante e prodigioso reflexo de leitura(s) produtivas.E de releituras, claro está. Eu descobri no Harold Rosenberg- que E.Morin cita/analisa nos anos 60...-paralelismos inefáveis com Orwell e Marcuse: a crítica da Dominação. Para quem tem seguido a polémica " pariseense" em torno do livro do Onfray sobre Freud, que se arrisca a ser a " grande " polémica do ano,por certo se recordará das magníficas, luminosas e profundas teses de Rosenberg sobre o Orghomem e seus avatares." Tradição do Novo ", de Rosenberg não deixa de iluminar também uma das teses centrais de Castoriadis, inscrita naquele livro capital sobre o " Conteúdo do Socialismo", que urge traduzir em português:(...) o círculo da praxis. Este círculo pode ser definido, como todo o círculo que se inclui na geometria plana, por três pontos não co-lineares. Há uma luta e uma contestação na sociedade; existe a interpretação e a elucidação desta luta; existe a determinação e a vontade políticas de quem elucida e interpreta. Cada um desses pontos remete para os outros, são todos os três solidários "; (...) Não tenho quase nada a acrescentar ao que o movimento de contestação revolucionário destacou/ elaborou como prioridades na sociedade moderna, desde o início.Os textos dos operários anónimos ingleses de 1818 ou 1820 sublinham expressamente que as associações de produtores devem substituir o Estado e que a sociedade não necessita de outro governo senão do representado pelas próprias associações. E isso permanece para mim um elemento absolutamente essencial da ideia de sociedade autónoma e que se auto-institui explicitamente, isto é, a necessidade de suprimir o Estado, o monopólio legal da violência nas mãos de um aparelho separado da sociedade.Por certo, existem consequências importantes e problemas profundos que derivam desse facto, a que voltaremos". Seguem-se outras valiosas observações sobre o elogio da Comuna por Marx, o "render" de Lénine ao modelo Sovietes criados em 1905 e o que caracterizou a revolta da Hungria em 1956: " Na Hungria, em 1956, ninguém " ensinou " o que quer que fosse às pessoas; os intelectuais, os estudantes, os escritores, os artistas de teatro colocaram-se em movimento, os operários constituiram os Conselhos de Fábrica. Todas estas formas não foram decalcadas nem deduzidas de uma qualquer teoria; foram criadas pelas pessoas, na e pela luta ".Que remete para : " Trata-se de revelar às pessoas que só elas próprios detêm uma resposta possível, que só eles próprios a podem elaborar, que todas as possibilidades e as capacidades de organização da sociedade se encontram nas suas mãos ". Salut et égalité. Niet

rui disse...

Se existe um discurso utópico límpido e possível de ler sem algum desconforto ou asco é o de Miguel Serras Pereira. "If only" o seu programa fosse realmente um programa "colectivo" ... Infelizmente, não existindo um ser "superior" na raiz do sistema social que vivemos hoje, ou seja, não foi nenhum deus quem no-lo impôs, resulta que o que temos é o resultado possível da "auto-organização" da espécie. Nada nos impede de "pensar" um sistema diferente. O problema é encontrar a matéria prima capaz de produzir - sem desprezo pelo "humanismo" - a(s) alternativa(s).

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Rui,
nada do que diz invalida o que tentei dizer. De acordo, não poderemos fazer a democracia, criar instituições que reconheçamos como obra da nossa responsabilidade e liberdade, sem que a grande maioria dos nossos concidadãos assumam essa vontade política e ajam em consequência. Mas isto, precisamente - e é o único ponto de discordância séria com a sua formulação - porque os outros que nos rodeiam não são "matéria-prima", mas agentes e co-autores da nossa história comum, não é razão para que não procuremos interpelá-los e interpelar a autonomia, pelo menos potencial, que neles pressupomos, na perspectiva da acção e da democracia.
Cordiais saudações republicanas

msp

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Niet,
excelente escolha a das reflexões de Castoriadis sobre o movimento dos conselhos revolucionários húngaros de 1956.
Avante pela autonomia democrática!
Abraço sem deus nem amo

miguel